Nenhum fogo queima mais que você

Certas noites, dessas em que me sento pra apreciar o fogo lambendo tudo em volta, a música incidental, o incenso e a vista desimpedida são você.

A sétima menor do mixolídio, o cheiro zen que teria impedido a guerra de Tróia e a extravagância dos prédios de mais de trinta andares.

O álcool é inflamável, soa o grave do narrador na minha mente, continuo derramando da borda enquanto giro a taça, intocável pela ilusão confortável da materialidade.

Abrindo caminho nas labaredas, sinuoso, pontiagudo, rastejando você me vem. Suplicante, quase.

E me envolve e me toma mais rápido que a jiboia do pequeno príncipe.

É claro que visto o chapéu. A carapuça, também, tornando indiscerníveis desejos e recusas, sensações e constatações.

O pensamento serpenteia em traços impressionistas, coisa que detesto. Achei que a decoração cubista me protegeria desses tipos de males do universo. Bobagem.

O fogo já atinge o teto, transpassa as sancas e o lustre de antiquário. Mal vejo qualquer coisa através dele. Como é grande a distância entre o que se sabe e o que se sente.

Ignoro seu pensamento insistente. Ignoro seu desespero e seu autocontrole. Ignoro seu virar de cartas, tanto as das confissões quanto as das promessas. Ignoro o revirar de olhos e os eventuais xingamentos ao que você não consegue tirar de dentro de você.

Que tipo de mestre budista controlaria a mente a ponto de extirpar a recíproca invasão involuntária?

Certas noites, nada certas.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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