Parece-me, às vezes, que somos receptáculos da imaterialidade e que tudo precisa de um corpo para decodificar tal manifestação. A poesia existe antes de ser escrita, pairando em frente a olhares desatentos até repousar sobre a percepção do escritor; a arte que pulsa das mãos pincelando o traço ou das pernas e pés em bamboleio e descompasso no tablado traduzindo a música para os olhos.
Na somatização do que nos habita sem aceitação; no pecado da carne que vem sem a intenção, sussurrado por espíritos errantes, e, sobretudo, no amor, como possessão da divindade desperta pelo outro, sagrado invasivo. E é admirável como o amor permite a corporificação de unidade, da sensação de completude, nós em um, gozo e plenitude, ainda que declarado nos detalhes dos fragmentos: na pele, na boca, nos olhos, na mão, no coração; eu sou amor da cabeça aos pés.
Meu amor esteve na pele, mas não somente na pele que tateiam os apaixonados, do gosto, cheiro e suor, pois paixão é isso: tatear em reconhecimento ao território desconhecido; mas no tato habitual e familiar que só o amor proporciona: na sensibilidade da minha pele em saber que está frio para você – mas não para mim – e no cuidado de não deixar de levar um casaco extra para te vestir, pois você sempre se o esquecia.
Meu amor esteve em minha boca. E esteve além dos meus beijos mais entregues, das juras ingênuas de amor, das declarações das admirações; esteve, principalmente, no que cerrei os lábios e deixei de dizer, ainda que machucado pelo término, das suas fraquezas e feridas, pois sabia que iria te magoar saber aquilo sobre si naquele momento, ainda que parte de mim assim o quisesse.
Meu amor esteve nos meus olhos: nos detalhes e trejeitos que me atentei a decorar com tanta devoção, mas também nos defeitos que vi e perdoei em aceitação. Esteve nas minhas mãos, no apego dos meus dedos entrelaçados aos seus, mas também na renúncia ao manusear a faca cortando os tomates em pedaços bem miúdos, do jeito que você gostava, enquanto eu preferia os pedaços maiores. Agora, além da cebola, cortar tomates também me faz chorar.
Meu amor nunca foi meu ironicamente. Até então, me surpreendia com os relatos dos amputados que ainda sentiam as partes do corpo que lhe haviam sido retiradas, como se ainda estivessem lá; do que ainda sinto ou desejo a presença. Sinto ainda o frio na noite solitária e o sol da manhã morno na pele; o doce e o amargo na boca; a lágrima a escorrer pelos olhos e o tempo a escorrer por entre as mãos…
E, vez ou outra, ainda sinto os batimentos do coração, mas sei que não passa da ilusão do membro fantasma que segue assombrado e perdido, carregando correntes em lugares dissociados até materializar-se em reencarnação mais uma outra vez.