Nunca

Aquela noite eu bati bem onde dói, né?

Você ficou muda.

Eu também fiquei. Olhando pra frente, sem te encarar. Não dava depois de ter sido tão preciso sobre coisas que eu nunca saberia. E consciente, de um jeito áspero, de tudo o que você tava sentindo.

Porque era no meu corpo que corria, entende?

É por isso que é tão fácil. Eu sempre sei. Não preciso te ler, sentir que seu abraço dessa vez foi tremido e sua voz tentava, muito mal, esconder uma mágoa profunda. Que se instalou aí. Que sua respiração, sempre tão diafragmaticamente perfeita, tava curtinha. E que você muda o jeito de falar o final das sílabas. Eu não preciso.

Porque eu sinto.

A minha respiração foge junto. Lá pra longe desse quarto. Como fugiu também dessas paredes tudo o que um dia pretendemos ser. E nunca fomos.

Nunca demos aquele passo. Nunca fechamos os olhos. Nunca demos as mãos.

Pelo mesmo motivo que não gosto de drogas.

Te tiro do transe e você sorri, é quase deboche, um pouco do seu desprezo automático. Defesa óbvia contra o mundo. Ataque de animal escaldado. Soberba de quem já viu tudo.

Não vou te dar uma resposta clichê, respeite a nossa história. Ah, história. Que palavra desgraçada. Me curvo a esses tomos que se pretendem reais. É isso, entende? Nunca foi real. Nunca poderia ser real.

Agora, aqui. O tempo parou. Olha lá fora, isso é literal. As folhas das árvores pararam de se mexer. As nuvens te esperam, os pássaros, em seu voo detido, retesam suas asas.

Nós dois, minha querida, fomos feitos para não ser.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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