Palavramor IV: desimaginar

Depois de muito tempo buscando entender a frieza daquele que pensava que era seu, sentiu nele uma mudança: eventualmente ouvia a voz dele em seu ouvido, por vezes sentia que ele tentava abraça-la, tirar fotos com ela tornara-se algo que ele esporadicamente fazia – tudo isso um contraste com o nunca que antecedia todas essas ações. Mostrar pra ela que sua presença fazia diferença: parecia ser esse seu parco e tosco empenho. Estranhamente, ela via isso com uma alegria própria à indiferença. Não que não ficasse feliz que ele fizesse isso: ficava. Mas já não sentia o temor que antecede a perda, o frio no corpo que antecede a ausência do calor do outro, a lágrima disfarçada que insiste em vir fazer companhia quando não há ninguém. Nada disso se fazia presente. Se sentia livre dele, como se sua ausência fosse agora uma questão puramente lógica: presente, ausente, valores numa tabela, nada mais. Havia começado um processo que sempre fazia desde sua infância: estava desimaginando.

Desde pequena era capaz de fazer isso com as coisas das quais desistia. Enquanto as outras crianças lutavam para deixar as coisas ir, ela as abandonava com facilidade – quando se decidia. Podia deixar de falar com uma pessoa, ignorar que algo sumiu, mudar de cidade, tudo com muita facilidade. Era imaginativa e construía narrativas longuíssimas. Mas não era só boa em construir longas histórias para se cercar de um mundo um tanto mais belo e mágico do que aquele que ela e todos viviam. Se sabia boa em desmaterializar seu afeto, suas imaginações, suas esperanças, suas projeções, seu brilho no olhar ao ver a pessoa ou chegar no lugar, as manias e cacoetes que compartilhavam caso fossem próximos, etc. Era capaz de desimaginar a ponto da coisa nem sequer parecer ter existido ou de a pessoa se perguntar se algum dia teve um vínculo com aquele ser que agora a olhava com a falta de afetação própria a um funcionário ao ter de fazer seu trabalho quando poderia estar dormindo.

Era um processo longo. O coração se desligava primeiro, como que recusando a bombear o sangue ao corpo de uma relação que estava destinada morrer e, quando putrefato, ser enterrado. A vitalidade desaparecia devagar. A relação, outrora motivo de agitação, se tornava apenas assunto. Logo depois eram os pulmões que se desligavam. O ar que respirava era só seu. Um ar já mais leve do que o daquele lugar venenoso. Fazia isso quando via que o lugar era realmente venenoso e que corria o risco de deixar seu rosto macilento, sua beleza apagada pela corrosão da espera. Por último, seu cérebro dali se desligava, os pensamentos e os impulsos elétricos não mais reagindo a nada daquilo que existia em sua frente.

Era um processo doloroso, sim, mas que culminava nas enunciações de adeus mais calmas que todos já viram. Às vezes eram mesmo silenciosas, nem sequer o barulho surdo de olhar de desprezo ou desesperança. As rupturas variavam. Iam desde aquelas que eram de fato enunciadas – tchau, não me procure mais, terminou, etc. – até aquelas que não o eram – e o ignorar era sua forma de devolver a crueldade com ela feita, posto que geralmente só tomava essa medida extrema quando se sentia ignorada mesmo quando o outro dizia ouvir – especialmente quando o outro dizia ouvir. Desimaginar era sua forma de lidar com as situações das quais não gostava e não podia mudar, mas era também sua vingança contra aqueles que, ouvindo, preferem ensurdecer. “Pois que eu emudeça para acompanhar”, pensava.

(a música é o que ela ouve, minutos antes de dormir. É também o que ela está pensando, em algum nível.)

O processo já havia começado com seu namorado. O empuxo a ele era dado pela ausência do outro, cada dia sentida com mais força. Sabia que não poderia conversar com ambos para não trocar nomes. Sabia que o seu se enciumava, embora fosse incapaz de demonstrar esses sentimentos, embora nunca dissesse nada. Sabia que não sentiria falta do seu e que pensava mais no outro. Sabia, enfim, de suas condições. Só não sabia que despretensiosamente, ao dormir, sonharia com o outro dentro dela.

Parte III
Parte V

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.