Palavramor IX: Véu

Foi engraçado como tudo aconteceu. Fazia meu ritual com a música do meu ex, tentava imaginar como era a mulher dele. Em algum desses momentos decidi dançar sozinha, um pouco já bêbada. Não sei bem o que se apossou de mim, mas liguei para o outro. Assim que ele atendeu, prendi a respiração e… desliguei. Ele retornou à ligação umas cinco vezes, ignorei todas, aumentei o som e voltei a dançar só de camisola, a mais sexy que eu consegui encontrar, a cor carmim es rendas ressaltando e sendo ressaltadas pela minha pele branca e meu cabelo escuro.

Não sei bem se demônio ou o destino se apossou da minha playlist, mas o que começou sendo apenas uma música mais ou menos sensual acabou degringolando em toda uma playlist sensual e minha dança, que era pra ser festiva e maníaca, uma descarga de energia mesmo, acabou se sexualizando e me deixando ainda mais carregada…. e o pior que é que eu gostava de cada momento. Me sentia mesmo como que dotada de um certo poder de sedução, como se me achasse capaz de atrair qualquer homem assim que o visse, como se meu olhar fosse uma sentença inexorável de um juiz implacável e meu corpo o destino da mais incontrolável ambição. Foi nessa hora que ouvi um barulho na porta, abaixei a música e fui checar. Segundos depois, a campainha tocou.

– Oi, tudo bem? Você me ligou, respirou fundo e desligou. Tentei te ligar de volta e você não atendeu, achei que tivesse acontecido algo. Mas já que está tudo bem…

– Não está exatamente tudo bem, como você pode ver… 

Eu tinha uma alça da camisola presa no ombro e os cabelos desgrenhados, eu acho que devia estar toda desarrumada, mas ainda me sentia a encarnação do desejo masculino, como se eu fosse capaz de, com meu corpo negar a realidade.

–  Você quer saber o porquê?

Ele fez que sim com a cabeça e, sincronicamente, como se meus desejos se impregnassem na casa e a controlassem, começou a tocar a seguinte música:

– É que…

Ouvimos um ruído e ele me interrompeu levantando um dedo e olhou para o lado como se tivesse ouvido um barulho no corredor, alguém passando ou algo assim. Seu ar preocupado me assustou um pouco, esperei que certificasse que não era, nem mesmo um vizinho. Ele checou o andar inteiro por portas abertas ou por pessoas no corredor, ratos ou o que quer que pudesse ter feito esse barulho. Em algum momento, fez um gesto para que eu viesse ver algo, pareceu ter descoberto a causa do ruído, supus que era um rato ou qualquer do tipo, me aproximei devagar.

Quando cheguei até onde ele estava, a chegada do meu andar pela escada, esperava já ver alguma cena nojenta, um rato comendo lixo, um ninho de baratas, qualquer coisa do tipo que iria se iluminar pela fraca luz que aquela escada tinha. Quando olhei não vi nada, ele apontou de novo insistindo que havia algo para ver e me dizendo eu tinha que olhar direito se não perderia. Quando olhei pra ele com os olhos de questão me encontrei com seus lábios de resposta, me pressionou contra a parede do corredor (ou eu o puxei, não lembro bem), segurou minha nuca e me deu outro beijo enquanto VCTRY se esgoelava dizendo que que eu tinha uma feiticeira de magia negra.

Lembro-me bem de não ter sentido surpresa quando ele me beijou, era como se fosse natural que ele fizesse isso ali, comigo vestida de camisola, no meio do corredor, dado que eu era quem eu era e estava como estava. Dali, fomos como adolescentes pra dentro da minha casa, a música empesteando os sentidos, o cheiro dele se tornando seu gosto, as mãos se tornando toque em mim, a cama se tornando nossa testemunha ocular, tátil, multissensorial, nossas vozes uma melodia que se misturava a música… Só hoje, quando acordei e o vi do meu lado, pude notar o quanto eu estive ali. Mas minha presença se marca na ausência também, a ausência de um certo véu que me incomodava que rasguei ontem sem saber como fiz.

Parte VII
Parte VIII

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.