Palavramor X: corrente

A conversa fluiu mais ou menos como sempre, como se nada tivesse acontecido de grave, como se aquilo fosse o natural, o cotidiano. Isso me fez pensar que talvez fosse verdade o que eu pensava, que era possível viver intensidades como cotidiano, que ser alguém que pensa que o dia-a-dia pode ser algo intenso, um modo de existir dentro de velocidades infinitas não é algo tão disparatado assim.

Ele me notou acordada, me puxou pra perto de si com um movimento suave e me beijou, notei pelo gosto e cheiro do sabonete e pelo gosto da boca que já tinha acordado antes, meia hora, ou 4 horas, quem sabe? Me deixei mergulhar na boca dele, me tornei aquele beijo que me amoleceu e instintivamente o puxei para cima de mim, por dentro da coberta, minhas pernas o convidaram, meu ar escapou pela garganta fazendo um som que não me lembrava se já havia feito alguma vez na vida, mas que achei que encaixava. Novamente sentia que meu corpo parecia ganhar uma vida própria de desejos dos quais eu era escrava e senhora a um tempo só. Senti sua língua e seu corpo deslizarem por mim, me dei conta de que estava fazendo algo que eu geralmente odiava, transar assim que acordar sempre me pareceu obrigação e, no entanto, cá estava eu, respondendo a cada gesto dele, encontrando-o no meio do caminho, querendo mais.

Quando ele finalmente começou a me escravizar com sua língua, eu sentia tudo mais intenso, não sabia se era a passagem do efeito do álcool, se era ele quem tinha mais técnica que meu antigo, se eu estava muito tempo sem transar…. sabia apenas que sentia um prazer muito incomum para aquilo, era como se algo me invadisse e não fosse eu mesma experimentando esse prazer. Sentia e via minha perna se abrir e as vezes fechar em torno do pescoço dele, meu corpo se arqueava como se estivesse respondendo enfaticamente a uma conversa, eu pegava a cabeça dele com uma das mãos e apertava contra mim, todas coisas que eu nunca havia feito e que, por isso, não sabia de onde vinha, uma tal, uma tal… uma tal desenvoltura, talvez assim que tenha querido pensar, mas me pensava finalmente me deixando ser a puta que queria ser na cama.

Não havia percebido, a respiração ofegante dele no meu ouvido me impediu quaisquer escutas outras, mas uma hora me dei conta de que, ao fundo, havia uma música lenta tocando, reconheci um eco da minha adolescência, era música de um tempo no qual eu ainda sonhava com possibilidades fantasiosas e não havia me tornado uma acomodada.

Tudo isso me fez ver que ele fazia do sexo não tanto uma penetração constante, uma experiência de pura entrega, mas também um momento em que estava absolutamente ali comigo, como se todos os antes e os depois fossem caminhos a esse momento. Não, não era um instante de nudez do corpo apenas: antes, meu espírito já estava nu, visível que queria ser para ele e daí a queda das roupas do corpo eram como a queda de um excesso que já não fazia sentido. Podia resguardar minha alma de sua cama e ser apenas corpo porque o sabia desejoso de ambos, os orgasmos e seus caminhos sendo a conexão faltante ente espírito e carne.

Me sentindo assim vista, quando notava que ele gostava de uma resposta particular minha, via algum jeito de repeti-la e via que ele também respondia à resposta e com isso espiralávamos no nosso próprio mundo, no qual gozo, sexo e tesão se retroalimentavam quase infinitamente. Não reparei no início, mas eventualmente notei que nossos dedos, como quase o resto de nossos corpos, estavam entrelaçados e terminamos por gozar assim, eu sentindo meu corpo se mexer sozinho, supunha que essa era a sensação de um orgasmo forte demais.

Levantamos, ele para o banheiro social e eu para suíte, cada um indo iniciar o próprio dia agora que ele já havia se marcado como nosso. Não sei quanto tempo se passou, coloquei uma música, rememorei as cenas, ri de felicidade de como aquele sexo dentro de mim não era apenas um homem me invadindo, mas uma espécie estranha de prazer novo, um prazer que vem do nada, inconteste, imotivado, violento.

Imagine minha alegria quando ao ir até a sala passei pelo calendário, vi que era domingo, o café estava pronto e tinha aquele dia com aquele homem para mim. Onde havia chegado eu não sabia, mas sabia que era a primeira vez numa relação que também não queria chegar, apenas me mover. Eu, que sempre havia sido corrente, agora não mais prendia e podia ser mais coerente comigo, pois fluía.

Parte IX
Parte VIII

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.