O pianista e a felicidade

Aquela primeira vez que te mostrei meus textos.

Estes textos, quando te fiz personagem. Eu estava deitada no seu colo, enviesada no seu carro, a gente tava tão sugado de tudo, que só estava ali parado meio bobos, criando forças pra catar algum lugar aberto pra comer.

Eu puxei meu caderno, era ali que te escrevia, muita coisa saía durante e logo depois das suas aulas, poetizações misturadas com escalas jônicas, sustenidos fazendo as vezes de coraçõezinhos apaixonados. E então era uma piada sem a mínima graça, uma sobrancelha sisuda do nada, um trejeito mais exagerado do que o momento pedia, e toda a poesia que é você virava texto como que se precipitando sozinha do ar naquelas linhas.

Quando eu soube que você viraria personagem?!, te respondi, ainda no seu colo. Seu nome escrito no quadro, até ele acidente, mesmo em enarmonia. E aquilo era tão você, que quase me implorava a narrativa. Eram muitos, muitos textos, mesmo ainda àquela época, em que indômitos nos desbravávamos, mas todos pedaços jogados sem um destino. Eu estava seca demais pra amarrar “o pianista” – o personagem -, e você ria dizendo que isso já tinha percebido, como se eu falasse do nós dois reais, ali embevecidos um no outro.

Lembro de todas as tuas reações, expressões – de todas, todas elas -, lendo o personagem, este personagem, inspirado em você, e de comentar o quanto e quão bem eu te lia, mesmo sempre tão bem escondido em todas as tuas máscaras, e do quanto, nas fantasias com que eu te vestia, você se via nu, escancarado naquele outro. E mais várias sacanagens de cunho sexual – e mãos mãos mãos muitas mãos -, tão típicas de você.

Você me perguntou como eu podia saber. De tanto. Te colocar tão exposto em cada disfarce feito pra figurar como distante. Então eram os olhos atrevidos, as mãos cheias de ecos em mim. Você já sabia que eu escrevia e já era “ávido e desejoso leitor”, como se dizia, mas ter se cristalizado nas minhas criações era um inesperado. Que eu, minha vez, me perguntava como. Como não lhe era óbvio, compulsório, que você, logo você, tão milimetricamente per-feito em cada de-feito não me despertasse toda essa centelha, o barro que molda realidades.

Mas houve uma reclamação. Como eu podia nos ter escrito tão escuros e noturnos, se nossa presença sempre, em qualquer situação que fosse, nos lavava a alma. Precisa ser assim, é assim que escrevo, te disse. Você queria ser diferente, ser um personagem feliz. Veja, que ultraje, a criatura dominando o criador! Então você me segurou indefesa e vulnerável e me fez cócegas até eu implorar em meio às lágrimas do riso de agonia prometendo que faria pelo menos alguns textos felizes, que o personagem não seria de todo desditoso, porque isso sim – tuas palavras – era um ultraje a nós.

Você pouco confiou quando te selei a minha promessa. O tal texto feliz (merece um plural, vai) sairia, mas não poderia ser como se qualquer coisa fosse, dessa forma tão vulgar.

Eu te disse que em um dia em que eu estivesse em casa absorta em mim mesma demais, em meio a um feriado, eu falaria exatamente sobre as cócegas, aquelas cócegas, e, que nesse dia, eu estaria pensando nelas. Que naquele momento eu te odiava por me fazer refém tão indefesa, entregue a você (e o quanto isso não era só literal, né, filho da puta), mas que eu sabia que desejaria aquilo depois. Mas deeeepooooois, bem depois, claro. Depois que eu tivesse me recuperado do trauma. Que um dia, muito tempo, queimaria você em mim a ponto de eu desejar as malditas cócegas. Pelo riso, pela cumplicidade, pela implicância, pela provocação, pela intimidade, pela sua espontaneidade e por todas as tuas minúcias que me faziam tão cativa.

Então está aqui.

Só pra você saber que, por mais que eu tanto nos tenha evitado, tudo foi real. Tudo é real. É feriado, meu amor, e hoje a única coisa que me moveria dessa inércia não seria show do meu artista favorito que ninguém conhece, não seria me refugiar na cidade do litoral que me dá abrigo, não seria fumar um maço de Lucky Strike azul de cabo a rabo me drogando de Coca-Cola e de um cento de salgadinho de festa. Seria estar vulnerável, indefesa e entregue a você.

Parte I

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.