Essa frase, proferida por Lúcifer ao longo da série, nos é apresentada como uma forma do personagem acessar os desejos daqueles que a ouvem. Teriam as palavras por ele ditas o poder de acessar os desejos de seu interlocutor e, além disso, fazê-lo confessar tais desejos sem restrições. Seria, assim, uma ruptura da barreira social, da máscara com a qual as pessoas se vestem no dia-a-dia. Poder maravilhoso, mas que primeiras temporadas levanta as questões: por que tais palavras e não outras? Estaria isso ligado à voz de Lucifer ou à interação com os personagens?
Eventualmente, esse poder de Lúcifer é aprofundado e melhor desenvolvido na série, a ponto de descobrimos duas coisas: primeiro, que é ligado ao olhar (um personagem se cega para impedir o questionamento de Lúcifer e tem plena consciência do que está fazendo); segundo, que seu poder nada mais é do que uma coisa secundária frente ao fato de que ele, como os outros anjos, refletem de volta aos humanos algo que eles sentem. Assim, AMENadiel (nome inventado, não existe na Bíblia ou no Talmud), como o nome já parece indicar, reflete para os humanos o amor que estes têm por Deus; Michael reflete o medo que estes sentem e sua aparência corcunda, seu jeito mais retraído e invejoso espelham bem a vida de quem vive com medo; Lúcifer, irmão gêmeo de Michael, com sua aparência e jeitos sedutores, reflete os desejos de volta àqueles que os têm. É por isso que quando pergunta sobre os desejos tem sua resposta prontamente respondida. É preciso ver seu objeto de desejo, amor ou medo, metafórica ou realmente, para falar sobre ele. Desejo, amor e medo são, portanto, coisas que você encara e, sem isso, se torna impossível ter quaisquer objetos dignos disso no horizonte (e objeto, aqui, é usado no linguajar psicanalítico, ou seja, abrange pessoas).
Para além da irmandade entre o medo e o desejo, Lúcifer desvela um caráter comum à vida humana. Na clínica vemos como não é preciso ser anjo para que os outros reflitam o desejo daquele que nos conta sua vida. Expandindo um pouco mais, o que Lúcifer como anjo faz (refletir o desejo para os humanos) é precisamente o que todo humano faz sem saber. A famosa frase atribuída a Freud, i.e “Quando Pedro fala de Paulo sei mais de Pedro do que de Paulo” diz exatamente isso: costumamos utilizar as pessoas como suporte de nossos desejos sem que elas necessariamente contribuam para isso. Assim, um parceiro romântico pode parecer interessado ou esquivo de acordo com nosso interesse nele; uma tarefa mais ou menos aprazível de acordo com para quem a realizamos; uma ação mais ou menos válida quanto mais nos vemos nela e assim sucessivamente.
Isso nos diz então que quando Lucifer, refletindo o desejo de seu interlocutor, pergunta o que ele deseja, é como se o próprio desejo encarnado perguntasse à pessoa o que ela deseja. O problema é que isso não é apenas ficção. Cada pessoa em cada posição que nos pergunta o que desejamos tem a chance de ser um pouco como Lúcifer e nos perguntar o que nós desejamos desde o ponto de vista do nosso desejo.
A questão é que, de acordo com a pessoa, o ponto de vista do nosso desejo flutua. Aquela pessoa não tão atraente talvez vire uma boa amiga, ao passo que aquela atraente demais nem sequer possa ser respondida ou deva estar em nossos braços numa sessão do sexo mais intenso que a gente consiga dar. Aquele colega de trabalho talvez possa ser também um bom P.A. ou aquela prima da sua amiga uma boa namorada. A respostas à questão “o que você, de fato, deseja?” vai variar de acordo com quem pergunta, posto que já contamos com a existência da pessoa ao responder.
Dito isso fica a pergunta: o que é desejar para você?