O que não te contaram sobre a liberdade

Uma frase que eu costumo dizer a meus alunos e amigos mais próximos que se interessam pelo pensamento filosófico é que o pensamento do século XX, especialmente aquele que se centra na noção de responsabilidade e liberdade radical, não foi suficientemente compreendido, estudado e não é exatamente vivido. Teríamos passado, ou assim creio, muito rapidamente à noção de problemas estruturais objetivos e estaríamos, com isso, ignorando nosso cadinho de responsabilidade individual em detrimento do combate às desigualdades brutais que, de fato, existem atualmente e são de grande peso para que possamos ou não exercer nossa liberdade. Mas resta nessa frase uma questão não bem esclarecida: o que é, pois, a liberdade?

Tendemos a pensar na liberdade como uma ausência de limitações para exercer a nossa vontade ou para realizarmos os nossos desejos. Assim sendo, ser livre seria ser ilimitado, seria poder ser capaz de realizar quaisquer escolhas e elas poderem ser realizadas por nós. Liberdade, aqui, é sinônimo de livre arbítrio, ou seja, é sinônimo da possibilidade de arbitrar conforme queremos, de termos como bússola única nossa disposição e nosso desejo. Tanto mais livre sou, pensamos, quanto mais coisas posso fazer como eu quiser.

À primeira vista tudo parece lindo e tudo corre bem. Se liberdade é escolher o que eu quiser, basta eu querer algo e poder conseguir esse algo para poder ser livre. Mas existem alguns problemas nisso: primeiro, algo que muita gente cedo descobre é que, diferente do que nos disse a Xuxa na infância, nem tudo que você quiser alguém vai te dar; segundo, isso ainda não é liberdade, é só livre arbítrio mesmo, liberdade é algo que vai mais fundo, que tá mais na raiz das coisas, algo mais radical, portanto, mais sério e menos fácil.

Sobre o primeiro problema, desde criança nós temos que lidar com isso. Nossas experiências iniciais de frustração (“na volta a gente compra”, “mamãe não tem dinheiro”, “não é não”, etc.) nos ensinam muito cedo que o mundo não se curva diante da gente toda vez. Na verdade, quanto mais a gente cresce, parece que ao mesmo tempo menos e mais o mundo se curva: menos, porque o que queremos passa a depender de mais e mais fatores (aquela promoção no trabalho, namorar uma pessoa legal e com química, amigos que nos entendam, etc.); mais porque aprendemos e nos especializamos em várias áreas, então coisas que pareciam impossíveis – fazer um prato de comida gostoso, ficar com alguém atraente, dançar uma música inteira com um par sem ficar nervoso (a) – nos parecem mais fáceis agora.

Já sobre o segundo, a menos que sejamos forçados, não refletimos ou chegamos até ele. Isso porque ele é um ponto mais tenso, de maior reflexão filosófica, porque situa a liberdade para além do livre arbítrio e dificilmente chegamos a esse ponto porque somos criados com base no livre arbítrio ser o que chamamos de ser livre. Mas quando pensada assim, de maneira mais profunda, vemos que a liberdade existe independente de ser capaz ou não de escolher determinadas coisas específicas. Isso porque as coisas específicas são apenas reflexos da nossa possibilidade sempre mais profunda de escolha, ou seja, mesmo em situações profundamente adversas podemos fazer determinadas escolhas em determinadas direções.

Sendo extremos e roubando um exemplo de Lacan, quando um assaltante me diz a bolsa ou a vida, diferente do que diz Lacan, escolho se a vida sem a bolsa vale ou não a pena, escolho então em que condições quero levar adiante minha vida. Estabeleço uma série de prioridades nas quais a minha vida pode aparecer como passível de ser vivida sem a bolsa (“deixa levar tudo”, “o importante é que você está aqui”, “bolsa se compra outra”, etc.) ou como insuportável sem ela – e aí a consequência é a morte. Note-se que não há nenhum juízo moral nem de qual decisão é melhor ou pior nesse caso. Cada um, a cada vez, nessa situação adversa, vai escolher o que achar melhor.

Apesar de ser um exemplo bastante extremo (bom mesmo é que não haja ladrões, afinal) ele ilustra bem a maneira como a liberdade é concebida quando pensada como radical. A cada momento estamos escolhendo algo independente das condições nas quais essa escolha se dê. Isso significa, então, que mesmo quando acreditamos que não estamos exercendo nossa liberdade – porque ela nos parece limitada, como no caso do assalto – nós estamos. Não existe, então, nenhuma situação na qual uma decisão é tomada na qual nós não estejamos escolhendo seja lá o que for. O corpo no qual nascemos, nossa classe social de origem e etc., ou seja, as coisas que não dominamos e não escolhemos pode não ser inteiramente responsabilidade nossa, mas a forma como nós nos posicionamos diante disso, sim.

Uma pessoa pode simplesmente adotar uma postura segundo a qual é incapaz de conseguir seus objetos por causa de alguma coisa específica da sua vida, tenha ela lastro teórico ou não; ou pode utilizar essa mesma coisa como impulso para se torna bem sucedida. Até a mesma frase pode ser utilizada pelas duas pessoas, mas como o posicionamento é inteiramente outro, a frase soa inteiramente outra.

Tomando-me como um exemplo, posso dizer, como digo em muitas aulas e com base nas pesquisas para meu pós-doc que “pessoas negras e periféricas sofrem mais e têm mais dificuldades na vida do que as brancas” e isso significará não uma bela narrativa na qual fui bem sucedido apesar de tudo, muito menos uma narrativa sobre como sou exceção. Não será nada desse blá-blá-blá que soa como um misto de mau gosto com papo motivacional de coach. Isso significará, simplesmente, que as condições nas quais meus colegas brancos de doutorado, por exemplo, viveram e vivem são mais fáceis do que as minhas para chegar ao mesmo ponto que eu cheguei. E significará também que, por razão ou outra, resolvi seguir nesse caminho a despeito de tudo. Essa foi minha escolha e ela é tão válida quanto a de outra pessoa que decidiu ir por outros caminhos, que achou a dificuldade era grande demais para ela e não seguiu adiante, etc.

Note-se que, como são escolhas livres, não existem valores que julguem essas escolhas de maneira universal ou mesmo de maneira a estabelecer uma hierarquia. Cada escolha é sempre livre (como o absorvente – piada ruim, eu sei -) e é feita com base não em motivações do passado, mas com base em quem cada pessoa quer ser no futuro. É tendo como objetivo transformar o futuro inexistente em presente vivido que cada pessoa constrói, por si, a pessoa que quer ser e enfrenta as dificuldades maiores ou menores de realizar esse projeto. E por esse projeto cada um é responsável a cada vez que escolhe algo de modo a se aproximar dele. Liberdade de escolha e responsabilidade para acatar o que se escolheu são, assim, coisas inescapáveis da vida humana e em cada coisa que temos na nossa vida temos a marca dessa dupla.

Claro: o problema maior não está no fato de as pessoas escolherem: isso, a bem da verdade, é relativamente fácil. O problema maior está no fato de o mundo, por vezes, opor uma resistência brutal e sistemática às escolhas realizadas – como nos casos de racismo, machismo, lgbtqia+ fobia, etc. Quem se deseja ser, nesses casos, acaba encontrando a resistência injusta e brutal do corpo que se é a despeito da pessoa que o habita, de modo que ser quem você quer ser é muito mais difícil ou, em certas épocas, impossível.

Excluídos esses casos, no entanto, temos uma grande parcela de situações sobre as quais não nos cremos responsáveis – porque não acreditamos tê-las escolhido -, mas que o somos. Aquela resignação frente a algo que não se conseguiu e que não se quis insistir e que pensamos “não teria como mesmo”; aquela insistência num relacionamento que já sabia que não daria certo pela incompatibilidade das pessoas, mas que pensamos “vou tentar até o fim”; aquele tempo que, posteriormente, julgamos que perdemos numa ocupação que detestamos, mas que à época pensamos “é melhor do que nada”; ou mesmo aquela pessoa que buscamos pra nos dar o conselho que queremos ouvir: em todos esses casos estamos buscando alguma forma de fugirmos da responsabilidade que é nossa, culpando uma outra coisa ou pessoa por aquilo que nós mesmos quisemos ser.

Esse também é o motivo pelo qual nós muitas vezes sentimos angústias diante das nossas escolhas. Dentre uma miríade de opções passíveis de se realizarem, escolher uma que exclua as outras (exemplo: namorar ou ser solteiro) significa, num primeiro momento, apenas uma coisa: que a(s) outra (s) não é (são) possível (possíveis), ou seja, perdemos outras tantas versões nossas que poderíamos ser ao escolher aquela específica. A angústia está em escolher essa uma e ter que seguir com ela por algum tempo, sabendo que as outras já não são mais possíveis do mesmo jeito que antes.

A diferença entre viver assim, com essa consciência, e viver achando que as coisas nos dominam e tem ou tinham que ser de uma forma específica é que, no primeiro caso, nós escolhemos com alguma consciência o que vai determinar nossa vida, no segundo, não. Não nos enganemos: continuamos escolhendo nos dois casos, afinal, até a escolha por seguir um credo é também uma escolha nossa. Mas, saber que nós é quem escolhemos cada coisa é saber que nós nos associamos àquilo e que, portanto, nós somos o alguém que somos hoje porque escolhemos aquilo para a nossa vida.

É claro que, sendo assim, não conseguir o objeto de desejo – ou seja, se frustrar – pode ser muito mais doloroso, vez que estamos cientes de que era aquilo que queremos e fizemos um esforço consciente de escolher. Em um certo sentido, é como se não tivéssemos conseguido ser quem gostaríamos de ser, ou seja, é como se algo impedisse aquela nossa versão de existir. Se fosse outra pessoa que escolhesse, se obedecêssemos a algo, se agíssemos de um certo modo porque somos de Áries, etc. ficaria mais fácil não conseguir. Afinal, tem ou um responsável pelo nosso fracasso ou pelo menos uma explicação.  O lado bom disso, no entanto, é que a conquista do objeto de desejo também fica mais saborosa, uma vez que estamos conscientes de que nós quem escolhemos e que, portanto, nós quem conquistamos e construímos aquela versão. A responsabilidade, nos dois casos, é inteiramente nossa.

Isso pode ser difícil de aceitar também, nós bem o sabemos. Afinal, passamos a ter muito mais poder sobre nossa própria vida e cada desejo deixa de ser uma coisa livre e inócua pra ter um certo peso. Cada coisa que desejamos passa a poder, de fato, nos apresentar um outro mundo. Se é esse o caso, fica uma pergunta: você está preparado para se responsabilizar pelo mundo que você mesmo deseja?

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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