O desafio da tristeza e seu vazio

 

É melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe – Vinicius de Moraes

De todos os afetos que nos assolam, sempre tive um olhar curioso à tristeza. Seja na minha vida, seja no consultório atendendo pessoas que sofrem, seja na família, amigos, a tristeza sempre foi meu maior desafio.

A raiva dá e passa, como fogo que queima tudo o que tem pela frente. Os ‘bons’ afetos, nem se fala. Mas a tristeza é desoladora. A tristeza parece funcionar por uma rede de wi-fi, ao ver uma pessoa triste imediatamente somos impelidos a ‘fazer alguma coisa’. Seja virar o rosto, seja carregar a pessoa triste no colo, seja apelar para o velho clichê ‘não fique triste, a vida é tão linda’…. o fato é que temos urgência em apagar a tristeza do outro, porque tristeza é contagiosa.

Além de altamente contagiosa, outra coisa que torna este afeto tão desafiador é que a tristeza é, em verdade, o único sentimento capaz de causar a desistência. Quando estamos tristes, desistimos de viver. Desistimos de qualquer coisa. Já vi sonhadores desistirem de seus sonhos, já vi amantes profundamente apaixonados desistirem de suas belas histórias de amor, tudo em nome da tristeza. A doença conhecida como depressão é assustadora, pois ela é uma tristeza tão intensa e sem fim, que neste adoecimento, faz com que a pessoa desista de tudo.

Freud nomeou de pulsão de vida a força fundamental que nos move. Ela dá origem a todo movimento, independentemente de seus aspectos ‘bons’ ou ‘ruins’. Alegria e raiva são expressões da pulsão de vida. Pulsar por viver. A raiva move atos poderosos, grandiosos, por meio de sua agressividade. Ela pode quebrar tudo que encontra pela frente. E embora ela possa destruir, toleramos muito mais a raiva do que a tristeza. É muito mais aceitável ver uma pessoa com raiva, com toda a manifestação da destruição, do que uma pessoa triste e reclusa. Intimamente sabemos que, por mais que a raiva possa ser destrutiva, só se enfurece quem está vivo.

A alegria, embora seja vista como a oposta da raiva, funciona no mesmo movimento. Explodimos de alegria manifestando nossa felicidade e satisfação. Esbanjamos sorrisos e abraços por aí, passando a mensagem de que vale a pena viver. Seja na raiva ou na alegria, seja para destruir ou construir, temos o desejo de viver.

Por outro lado, a pulsão de vida tem uma irmã, a pulsão de morte.  O sono, a saciedade, o orgasmo. Estados de ‘pequenas mortes’. Estados necessários, afinal, se ficássemos presos no impulso de vida, uma hora explodiríamos. É necessário o repouso as vezes. É necessário alternar entre vida e morte.

A tristeza pertence a esta família. É um estado onde nenhuma ação acontece. Não se confunda tristeza com angústia, aquele sofrimento que esmaga o peito parecendo que a gente vai morrer. A angústia seria como agonizar, a expressão da última luta pela vida. Angustiados, assim como os enraivecidos, podem tomar medidas desesperadas.  A tristeza é a derrota nesta luta.

Veja por exemplo o atleta que perde uma competição à qual se empenhou muito. Penso em particular no jogador de futebol Ronaldo fenômeno, quando participou da copa do mundo de 98. Ronaldo lesionou o joelho, o que o impediu de participar da competição até o final. Eu era criança quando vi a cena pela TV, na época, com seis anos de idade, ainda não conhecia tanto do universo dos afetos, e vi todo aquele sofrimento, ao qual pensei que fosse apenas dor física.

Hoje, ao lembrar do acontecido, e até mesmo ao ver entrevistas do jogador acerca do assunto, percebo que a maior dor é a dor de tristeza. É a dor de não poder fazer nada. No caso dele, a dor de ‘ter’ que desistir.

Mas se a pulsão de morte é necessária, qual o problema acerca da tristeza? Você poderia me perguntar. Não desejo dizer que devemos expurgar a tristeza do mundo. Mas se ao ficarmos presos no ciclo de alegria ou raiva podemos explodir, o que acontece se ficarmos presos no ciclo de tristeza?

Podemos aprender a reposta disso, sem muita dificuldade com os depressivos. Morremos em vida. Entramos em um buraco no qual não há como sair. Não há forças para fazer nenhum movimento sequer.

É importante ficarmos tristes para aceitar as derrotas. É importante ficarmos tristes para processar as dores e para aprendermos com elas. Quando atravessamos o vale da tristeza voltamos com novas experiências, novos aprendizados.

A tristeza só é mais desafiadora, porque quando lidamos com alguém ‘muito vivo’, cheio de energia, podemos canalizar, direcionar essa vida para novos caminhos. Mas não se pode canalizar aquilo que não flui, que não tem movimento. E não é como se pudéssemos simplesmente ‘emprestar’ nossa força de vida para quem é triste. Não funciona assim.

Lidar com a tristeza é difícil porque a força de vida deve surgir do próprio sofredor. No máximo podemos tentar inspirá-lo, ajuda-lo a se levantar, mas se tentarmos carrega-lo no colo, assim que ele for posto no chão, cairá de novo. É preciso caminhar lado a lado, deixando que a tristeza seja vivida, que cumpra seu propósito, suportando o ‘contágio’.

Percebo que para cuidar de pacientes tristes, muitas vezes não basta ‘ajudar’. Preciso ficar triste junto com eles para que possamos atravessar juntos o vale da tristeza. Assim como o bebê que só deixa o conforto do útero porque se torna grande demais para caber lá, só é possível superar a tristeza e recuperar a alegria de viver quando se aprende suas lições e, assim, o entristecido deixa de sê-lo, tornando-se grande demais para caber na tristeza.

Entretanto, é difícil sair disso quando não se há força para esboçar qualquer movimento. É difícil sair da tristeza sozinho. É preferível desistir, morrer, deixar pra lá. E neste abismo de vazio e silêncio ensurdecedor, sem forças para reagir, por vezes quem é triste permanece. Chega até a se acostumar e esquecer a tristeza, mas nunca a superá-la, como quem é assombrado por fantasmas. E assim nossa sociedade, que esconde e silencia a tristeza, se torna cada vez mais uma sociedade triste e sem cor.

 
Marcos Moura

Psicólogo, Psicanalista, mestre em Psicossomática e escritor.

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