Amores vêm e vão, você fica

Dez anos atrás, uma versão minha ouvia no talo dia e noite aquele sofrido “Não aprendi dizer adeus”, de Leandro e Leonardo.

Eu tinha muitas coisas pra dizer, que viraram livro, que viraram música, e ainda assim foi tudo insuficiente. Até porque, frente a frente, calei. Como calei frente ao teu “E a gente?”. Como calei no meu falso – tentativa de superioridade aplacando a vulnerabilidade das coisas que a gente não suporta, sentimento que você bem conhece – “Não somos um casal”.

E teu olhar, me encarando (os olhos profundamente inquiridores de “por que não?”, de que tanto falo), me encharcou de perplexidade, batendo a pontada de esperança dos “E se”. Eu me odiei por, naquele segundo, desejar.

Eu chorei. Mas não agora. Foi minha outra eu. Chorei sozinha quando podia, em toda oportunidade. Chorei no meio da rua quando era impossível conter. Chorei depois de dar chance a outras pessoas (é possível dar chance real a alguém nessas situações?) e só se avolumar o vazio de você.

E a verdade é que esse inverno, em dez anos, nunca passou. Penso isso e me corre o arrepio da tua ausência, me fazendo puxar um cobertor mesmo no calor escaldante do verão de Pernambuco.

Eu nunca tive escapatória de você. Não importa pra onde você vá. Não importa pra onde eu vá. Você continua todinho talhado em mim. Talvez pelo tanto que tenhamos um do outro (a maldita “identificação tão profunda”). Carregar a mim, comigo, é sempre carregar também você.

Essa nossa competição com a vida, com a gente mesmo, um com o outro, de quem sente menos. De quem se importa menos. De quem é mais indiferente a tudo. De quem lida com superficialidade, quando, na verdade, é o oposto.

Nós dois, pura síntese da idealização e fantasia, nosso defeito compartilhado de, mesmo com a alma tão ferida, ainda acreditarmos no romance em seu estado mais puro. O que, com toda a nossa flexibilidade – veja o paradoxo -, nos impede de dançar a dança da adaptação à realidade.

Queremos, precisamos dela, a paixão pura, despida. Mas nunca a encontramos. Porque os outros raramente a querem de fato. Raramente a ela se entregam de fato. Eles sequer a entendem. Menos ainda como nós, que dela fomos feitos. E eis que, em todos os tantos pontos que nossas almas se encontram e se encaixam, justamente neles, nos impossibilitamos um ao outro.

E a vida nunca nos ajudou em nada. Pelo contrário. Concurso que mesmo com prazo vencido convoca pra outro estado. Trabalho improvável que surge em datas comemorativas. Pandemia mundial. Relações nos entrecortando, tentativas vãs de silenciar nós dois em bocas outras.

Mesmo quando a gente se dispõe, os dois, guarda baixa e alma entregue – raro pra gente -, a vida nos desencontra.

Dez anos depois, existe essa versão minha aqui, de hoje, que ouve a mesma música. Saída da tua caixa de som. Ecoando pelas tuas paredes. As ondas sonoras chegando até mim depois de ricochetearem em cada detalhe da tua realidade. Eu, deitada no teu sofá. Imersa no teu mundo, tua decoração caoticamente organizada. Rock ao lado do chapéu de cangaceiro. Poderia parecer díspare, mas, te conhecendo, vejo o todo harmônico de você. É tudo uma só linha de sentido. Tudo se completa. Tudo é o próprio sentido em si.

E eu, tão técnica e dona das palavras, não acho como descrever o misto de sentimentos que me atacam. Nostalgia por uma vida sendo um “quase” qualquer coisa, batendo na trave contigo. Paz por te sentir em cada canto desse lugar. Realização por ser adulta e poder surgir em 2.000 km como se fosse nada. Impotência por ver que isso de nada adianta. Tristeza. Tristeza pela situação, por você, por mim, por essa tentativa arbitrária de um “nós dois” sempre fracassada. Incredulidade. Como posso estar na sua casa, a 2.000 km (mais do que isso, na real) da minha, na época mais improvável possível, e sem você? Contigo do outro lado do país. Sem previsão de quando/se (como sempre) te veria de novo. Que sina é essa? Inconformação. Negação.

Me restava opção outra a não ser ir embora? Pra eu poder me iludir de que tive escolha do que quer que fosse? Que ainda tenho um mínimo de domínio sobre tudo? Sobre mim.

De fato, muitos amores foram e vieram nesse hiato de anos de nós dois. Amores importantes. Amores que bagunçaram muitas coisas em mim. Amores que me trouxeram à consciência traumas ignorados. Amores que me ajudaram a me encontrar.

Mas do que adianta se, quando removo essas camadas de tinta tão superficiais que sequer demandam esforço, é sempre você que incrustado eu encontro em mim?

Eu realmente achava que você tinha passado. Ou, não, eu nunca me aventuraria em algo do tipo se houvesse o mínimo resquício consciente. (Ou será que, justamente por isso, o fiz?) Eu achava que podíamos nos dar ao luxo de nos dizer amigos de infância que em dado momento tiveram percalços afetivo-sexuais. (Não questione, é exatamente do mesmo jeito que você lida com as coisas que mais o consomem, como se nada fossem.)

Eu quis me enganar. Foi assim que suportei essa impossibilidade de nós dois. De nunca termos tido sequer a oportunidade de descobrir. De eu me irritar com as suas manias e você com as minhas. De incomodar as piadas sem nenhuma graça do outro, mas que nós mesmos insistimos em fazer. De tantas coisas que mal tivemos a oportunidade de descobrir.

A frustração toda é por isso? Pelo desconhecido? Não sei.

A única coisa que sei é que, no final das contas, não, não aprendi dizer adeus. Isso nunca vai acontecer enquanto o adeus for você. Eu nunca consegui, de fato, deixar você ir. Mas, “se tens que me deixar, que sejas, então, feliz”.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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