03/06/2025
A inevitabilidade de você
Destino é traiçoeiro, mas como você nunca foi dada a acreditar em coincidências, vamos pela terminologia que lhe agrada: o inconsciente só nos leva pro buraco.
Foi em uma dessas ilusões de amar outras bocas, peles e gostos, que me vi, mais uma vez, enredado em você.
Eu já não pensava em você, Elizabeth, o que era deveras peculiar. Dessa vez, pela primeira nesses cruéis doze anos, não tive o ímpeto de te enviar áudio no meio do show cantando “a verdade é que eu minto, que eu vivo sozinho, não sei te esquecer”, ou qualquer trecho de “Evidências”, que veio um tanto depois.
Eu sequer pensei em você nessas horas. Só me dei conta do não pensar dias depois, quando vi aquela sua mensagem cretina dizendo que pensou em mim porque ouviu de algum lugar improvável ressoar meu artista preferido.
Achei cretino, porque é. Mas não me deu efeito. E foi com alívio, mas também com a paz da indiferença, que soube – verbo errado, mas deixa esse aqui – que eu tinha finalmente me livrado de você.
Mas havia uma mulher. Porque sempre há uma mulher. Só que essa era relevante – esse tão raro de mim. Ela usava o seu perfume. E, não só isso, mas, na química da pele, era o mesmo cheiro que dali resultava.
Mas não era somente o óbvio de sempre. O mesmo jeito de prender o cabelo pendendo pro lado, quase se desprendendo, as pintas ou as péssimas piadas, o óbvio das aparências.
Tampouco os simbólicos, a presença-fuga, as provocações veladas e as escusas dela mesma (as de você mesma) sempre transferidas pra mim, a impossibilidade do aprisionamento* ou os efeitos que me causava.
Mas houve um dia. Porque sempre há um dia. Ela pegou meu violão da parede, por puro reflexo – impulso que era teu -, mãos desbravadoras – tais quais as suas -, olhos de devassidão e timidez, um olhar que há muito eu já tinha reconhecido. Em você. E foi chocante – embora não devesse, artimanhas do inconsciente – reparar no quanto a voz dela, o timbre, trejeitos, era exatamente você – se você afinasse as notas e não tangenciasse sempre aqueles comas em todas elas. Era uma versão sua produzida, autotune orgânico, ao vivo, sentada na beira da minha cama. (Percebe o eterno retorno?)
Mas o fato de ela cravar as notas com precisão tamanha era um defeito terrível, pois a ela faltavam suas arrebatadoras imperfeições: desvio de septo, paranoias desmedidas, sonambulismo digno de filme de terror, péssimas escolhas, preguiça existencial, oportunismo, covardia. Tudo o que você tanto teme que venha à tona pra maioria das pessoas, mas que se mostrou pra mim como superfície desde o nosso primeiro contato, doze anos atrás. Tudo o que justamente me fez te amar e enredar desde o primeiro dia.
Eu não te amo mais, Elizabeth. Você tinha razão. Quando tivéssemos um pouco mais de realidade, eu te viraria as costas. Sim, você se fez acabar pra mim, por escolha, tantas vidas nesse ínterim de nós dois, finalmente. Parabéns por sempre ter estado certa. Mas por que nem assim eu consigo me livrar da inevitabilidade de você?
—
* Não é este o refúgio no qual reside todo o seu fascínio? Tolos, todos eles, querendo castrar justo o que a faz tanto resplandecer. Já eu, desejoso de sua liberdade e indomesticabilidade, encontro sempre o pior e mais tenebroso dos meus erros.