A vida como um romance

A pessoa que te lembra constantemente o quão bom/boa você é; a outra, que te lembra constantemente o quão ruim você é; o(a) amigo(a) gentil que você sabe ter certos sentimentos por você mas prefere fingir que é apenas amizade e nada mais; o pai ou a mãe que cobram demais ou de menos, são ausentes ou presentes, amorosos ou displicentes; o relacionamento amoroso mantido apenas por motivo de segurança; aquela experiência traumática sofrida na infância tudo isso guarda em comum o fato de fazer parte de sua história. De modo geral, sabemos disso e é exatamente por isso que não sabemos disso.

A psicanálise se configura como a forma mais radical do conhecimento desse fio condutor de experiências que nos constitui. Isso porque, dentre as trilhões de chaves de leituras possíveis ao observador do processo analítico, elejo aqui a leitura da psicanálise como uma experiência na qual o se efetua é a leitura da vida como um romance.

Narrativa talvez fosse o termos mais adequado e certamente se encontraria no espírito do que Paul Ricoeur já defendeu em seu Tempo e Narrativa. Entretanto, o conceito de narrativa retira a algumas dimensões que o romance permite. Romance permite afirmar que a vida é uma ficção que não tem qualquer motivo para ser da forma que é. Não existe nada que te condicione aos elementos aos quais você escolheu. O que vai quase sempre existir é uma situação com a qual você vai ter de lidar. O nascimento numa família rica ou pobre, branca ou negra, nascer mulher ou homem não são portanto condições, mas situações, com a exceção, talvez, do gênero.

Pensar a vida como romance a partir da psicanálise aponta para o fato de que cada um daqueles termos do primeiro parágrafo desempenha um papel específico e é, portanto, um personagem da trama que chamamos nossa vida. Assim, a pessoa que nos lembra quão bom/boa ou ruim somos talvez nos sirva para elevar/rebaixar nossa visão de nós mesmos em momentos nos quais sentimos a necessidade disso, uma necessidade que jamais nos demos conta de possuir.

Talvez quando nos sintamos felizes – donos (as) do mundo na expressão coloquial – ouvir o quão maravilhoso(a) nós somos não seja a coisa mais agradável, vez que nos causaria um certo desconforto essa repetição do mesmo. Talvez precisemos ser lembrados(as) de que precisamos provar que somos bons/boas.

Assim, procuramos aquela pessoa que parece estar sempre dois ou três passos adiante e a perguntamos o que ela conseguiu nos últimos tempos ou, talvez, nos lançamos no ato de vai vasculhar a vida dela. Podemos talvez notar aí que nosso muito, perto daquilo que aquela pessoa é, não é lá grande coisa. Notamos, portanto, que ainda há muito a caminhar e nos colocamos, novamente, em marcha. Buscamos, com isso, ainda que não de forma consciente nossa insatisfação conosco mesmos, e conforme já defendi aqui, para nós modernos a satisfação é algo bastante cruel.

Em momentos de tristeza, o oposto geralmente ocorre. Sentindo-nos inferiores por alguma razão, sermos lembrados do quanto você estamos adiante dos outros talvez seja o remédio e/ou a solução inconsciente que adotemos no momento. Assim, procuramos nossos amigos menos bem sucedidos e começamos a notar que perto deles já caminhamos tanto que, mesmo que descansássemos por séculos, seríamos para eles a Tartaruga de Aquiles.

A amizade gentil e atenciosa daquela pessoa que sabemos ou desconfiamos que ser apaixonada por nós, seja porque essa pessoa é réu/ré confesso(a) seja porque já notamos certos sinais (como a ausência completa de outros interesses amorosos na vida sem qualquer motivo aparente, por exemplo) nos traz sempre a impressão de haver um backup plan, um plano B caso tudo dê errado em nossa vida amorosa. Nossa cultura reserva o nome de friendzone ao local que essa pessoa plano B ocupa.

Trata-se, literalmente, de uma zona de amizade na qual a pessoa se dispõe a fazer tudo que um namorado faz sem ter nenhum retorno sexual ou amoroso romântico por isso. Apesar de ser uma visão tacanha que supõe que uma pessoa ser gentil mereça recompensa sexual quando na verdade nada é mais apartado do amor e do sexo do que o mérito, essa visão consegue dar conta de uma dimensão nossa que é a impossibilidade da perda.

Por um lado, é muita inocência ou arrogância supor que pela gentileza ganha-se o amor no sentido sexual e romântico do termo; por outro, não é incomum que o outro polo alimente essa ilusão enquanto ilusão unicamente para se sentir amada. Assim fez, por exemplo, Jesse de New Girl com Nick seu amigo e colega de moradia.

Enquadrou-o, conforme diz Nick, na posição “um namorado sem as recompensas”. A responsabilidade por ocupar esse papel de insatisfação é tanto de quem mantém quanto de quem é mantido uma vez que para os dois lados se trata de ocupar uma posição para alguém, quer seja a posição de objeto inatingível, quer seja a de pessoa que aguarda para sempre seu momento oportuno.

Não é incomum que o objeto inatingível acene com sua fragilidade à quele (a) que aguarda e, a menos que sejamos hipócritas, temos de admitir que o conforto de alguém que aguarda para nos dispensar certo amor romântico é muitíssimo mais confortável do que o conforto de alguém que é apenas um(a) amigo(a). Isso porque, não obstante termos o alívio da experiência amorosa ruim pelo desabafo, temos a certeza de sermos desejados por outrem. Ser desejado é sempre reconfortante.

Já os pais presentes ou ausentes, amigos ou carrascos, displicentes ou atenciosos, talvez o sejam  por motivos que concernem apenas a eles, mas não raro compreendemos seu modo de ser como dizendo respeito a nós. Assim, a mãe que duramente se sacrifica pelos filhos é vista como aquela figura santa que “tudo fez por eles” e os filhos carregarão esse peso por um grande período da vida. Dificilmente verão, de modo geral, que a mãe se sacrificava não apenas por eles, mas também porque a ela essa era a forma de viver mais correta tendo no sucesso dos filhos sua recompensa.

Não à toa, essa personagem trágica que tende à morte é geralmente vista como uma santa. Vista como depurada dos pecados pelos sacrifícios feitos, não se vê entretanto que a existência dessa personagem é unicamente especular (depende do olhar do outro) e sacrificial (depende de alguém a quem se sacrificar). Como bem argumentou Betty Friedan em seu Mística Feminina, essa figura da mãe sacrificial ou da “dona de casa” (em inglês, idioma da autora, é ainda pior: Housewife, “esposa do lar”) não causa outra coisa que não insatisfação existencial e a sensação de que a vida pode ser mais do que ela é de fato. Ocupar essa posição diz muito mais sobre como a mãe conduz sua vida do que sobre o que os filhos são ou podem ser. trata-se de uma posição no discurso do outro que é, portanto, muitíssimo confortável.

Já os traumas infantis, essas experiências que lembramos de ter sentido angústia (ou ódio a depender) tão logo elas retornam à memória, muitas vezes nos servem para nos posicionarmos frente ao outro. Como exemplo tomo as pessoas que sempre contam sua história de infância sofrida e de como triunfaram apesar de tudo o que passaram.

Apesar de terem triunfado de fato, parecem precisar reafirmar constantemente seu triunfo e seu sofrimento através de sua narrativa. Talvez estejamos de frente a uma pessoa que precisa de uma certa aprovação do outro e fará de tudo para consegui-la, talvez estejamos de frente a uma pessoa que ainda não conseguiu se livrar os fantasmas do passado, talvez estejamos diante de uma pessoa que apenas queira se dar a conhecer para que compreendamos porquê dela ter certas posições. Talvez as três posições estejam até mesmo confluentes e se alternem na mesma pessoa.

A única coisa que é inegável é que esse passado não cessa de se inscrever como um signo do presente, não cessa de se atualizar enquanto passado, ou seja, não cessa de retornar. A psicanálise guarda o termo trauma para essas experiências que, apesar de inscritas, não conseguem de forma nenhuma se integrar num todo psíquico. Nesse sentido, apesar de traços dessa experiência traumática reaparecerem, a experiência em torno da qual essa narrativa circula não está, ela mesma, integrada à memória, sendo antes um certo excesso carregado de energia psíquica. Esse excesso não cessa de tentar se inscrever no “funcionamento normal” mas não cessa, também, de falhar nessas tentativas de inscrição.

Do que foi dito, compreender a vida como um romance não é algo estranho ao que nós fazemos cotidianamente, mas curiosamente é precisamente por isso que é o que há de mais estranho. Como a escola de filosofia chamada fenomenologia costuma dizer, o mais próximo é o mais distante e, exatamente por isso, é o que nos é mais fundamental.

Talvez perceber nossa posição de autor e personagem de um romance nos ajude a compreender porque naquele dia tivemos uma atitude tão estranha e desmedida, porque escolhemos aquele(a) parceiro(a) amoroso que sabíamos ser ruim, porque muitas coisas sempre parecem se repetir etc. Talvez seja somente nos compreendendo como autores de nossa história, no mesmo sentido que um escritor autora um romance, que podemos compreender que, ao fim e ao cabo, a pena desliza com maior tranquilidade quando as linhas já estão no papel, ou seja, temos mais facilidade em escrever em um papel margens e linhas do que em um papel em branco.

Entretanto, se as linhas balizam nossa escrita, elas também a limitam de tal modo que nossa única possibilidade é seguir adiante escrevendo sempre do mesmo jeito: da esquerda para a direita e sobre a linha. Compreender a vida como um romance nos permite abrir espaço para saber que tanto quanto nossas palavras sobre o papel, o respeito às linhas é uma escolha nossa porque nós é que escolhemos qualquer papel ocupar, no duplo sentido do termo ocupar, qual sejam: preencher e exercer.

Texto originalmente publicado aqui.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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