Acordo

Acordo.  Hoje é seu dia. Cabelos negros longos, a pele exposta, o olhar debochado. Quase da minha altura, sotaque diferente, um ritmo todo próprio. O encaixe é justo e belo porque é o encaixe do choque inelástico. Vem com força, mas não é forçado. O meu deboche analítico se faz completo pelos exageros que são seus, caricaturas duplas que dão as mãos no infinito. Sua voz doce, compassada, quase como se quisesse levantar voo e cantar; a minha, rápida, cortante, pausas súbitas. Uma acostumada a ser constante, sustentar um espetáculo; o outro, acostumado a simplesmente cortar falas, escandir, como falamos. Vozes, apenas. Impressões, no ar, de quem somos. Se desfazem tão logo surgem. Viram outra coisa, desaparecem. São agora memória e imagem.

Você chega básica. Jeans, camisa branca. Suficiente. É para chegar numa casa, não num bar, o único olhar a ser impressionado é o meu. E esse já está mais ou menos garantido, sejamos sinceros. Um beijo oi, que vira tudo bem, como vai, vou bem e você. Conversação que todo o corpo faz sem precisar vibrar cordas vocais – a energia se dissipa de outros jeitos. Você deixa o que trouxe em cima da pia. Uns chocolates, uns doces, pipoca, coisa de filme – você é tão atriz e isso é tão bonito.

Comida pronta, comemos e o deboche come solto também. De todos os perfis possíveis. Para você, personagens; para mim, estruturas ou perfis, a depender do trabalho. Você e eu sabemos emulá-los. Por gosto e profissão ou por gosto que virou profissão. Gosto do gosto disso. Do encontro com alguém que não é igual, não fecha nada, não complementa, só choca (se choca comigo, choca a quem ouve).

Nossa relação é a força que perpassa a impossibilidade de complementar, o abandono dessa vontade, movimentos infinitos de uma espiral que não se acaba e nem apenas sobe. Às vezes retoma um ponto, refaz ali, emperra acolá. Travar também é preciso: indica o que não funciona, indica o que é gostoso, indica que algo está ali. A trava não é sempre um não. Às vezes é um espera mais um pouco, como com a gente. Errantes que somos, esperamos em movimentos circulares. Errados que somos, queremos correr contra o tempo, viver o que não tivemos ainda de uma vez.

Somos também um grande ritual a esse Deus obscuro chamado amor. O corpo se arqueando na cama, a respiração ofegante os suores se misturando: oferendas, nada mais. Os fluídos se movimentando e se misturando num sexo mais calmo, a nossa agressividade estourando numa noite pós de crise de ciúmes, a delicia dos gozar das experiências distintas: oração, nada mais. O beijo de boa noite, as mensagens de cuidado, o toque no rosto com o olhar compenetrado: o sim divino. É o nosso acordo.

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Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.