Vem Conversar

Bigodinho salafrário de personagem rodriguiano

Depois de tantos depois, em uma dessas noites de dias úteis esfriando antes do que deveria a cidade cinza, o porteiro me solicita autorização no teu nome.

Me pergunto se ele confundiu a visita ou o apartamento, e, a ele, pergunto a descrição.

De alguma forma, eu já espero as imprevistas recidivas tão certeiras. Mas sem nem avisar?

Te autorizo quando me atinge o ceticismo de ser mesmo você somado à minha impossibilidade de te negar. Somam-se também a expectativa riscando o estômago e o desejo que todo o corpo domina de lavar meu apartamento de você.

Depois da subida de elevador mais demorada dos últimos seis meses, você me sorri o contraste do sorriso juvenil na cara sempre tão séria e um tanto soberba.

E me sorri com os olhos de quem finalmente cede, na curvatura que me fez cativa do bigodinho salafrário de personagem rodriguiano. E olha que carioca sou eu, mas quem trouxe as armadilhas do malandro pra me enredar foi você.

As ondas consecutivas do sentimento represado me tomam o corpo, fazendo as mãos suarem mesmo no clima seco. Esperado. O que eu não esperava era o seu deságue, tão acostumada com tuas tentativas de comedimento que estou.

Eu esperava menos o corte das cercas que castram há meses o sentimento. Eu demorei a ver, você se esforçou pra sufocar. No final, nós dois somos dois belos idiotas.

E você me saliva o beijo do tempo que perdemos em vão. Por foco errado distraído, pela avidez desesperada de desviá-lo. Tudo tão em vão. Nossa conexão que bateu vil desde o primeiro reconhecimento das bocas impossibilitou qualquer fuga.

Em algum momento, os dois teriam que se render.

Peço desculpa pela fuga do início, você, por tê-la segurado de onde a soltei, me dando suas declarações espontâneas que você tanto evitou que saíssem e que trazem meu coração até a ponta da minha língua.

E eu gozo. É gozo, é isso. E não é só essa banalidade de pulsar no teu corpo, junto com o teu corpo. É o gozo de saber que escolhemos descansar nossa alma uma na outra. Repousar o espírito. Respirar a paz que se insinuou sorrateira no primeiro abraço.

Que o mundo se acabe em volta da gente, vai me conduzir na nossa dança o ritmo do teu beijo, sentindo o roçar do bigodinho salafrário de personagem rodriguiano.

Em que outro lugar eu faria morada?

Certeiro, Ligabue canta o que eu já sabia, tornando o genérico dessas músicas populares particular: nessuno dice mai se prima o se poi e forse qualche dio non ha finito con noi.

Dessa vez, sou eu que te sorrio aquele “eu também”.

L’amore conta.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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