Charme – Parte 1

Leia o texto com essa música ao fundo:

À primeira vista ela era como as outras: nada de especial. Baixa, cabelos cacheados, branca que tenta ser morena, mas falha miseravelmente na tentativa. Pros meus gostos, ainda bem. Sonhos muitas vezes já vistos (especialmente por um analista), linguajar batido que confessa a crença naquele grande blábláblá de intensidade e singularidade, mesclado com um misticismo de quinta categoria (“sou assim porque sou de escorpião”, dizia). Era normal, certamente – “e eu muito chato”, penso enquanto tomo um gole do vinho ao escrever essas linhas. Esse é sempre o problema de pensar demais, afinal: tudo outrora grandioso se tornar já visto, meio banal e o mais simples, as coisas com as quais a gente conta todo dia, se tornarem as mais bonitas. É realmente um mundo de cabeça para baixo.

Por sorte, algumas vezes uma vislumbrada de uma pessoa não é tudo que temos dela e vemos um pouco além. A conquista do vislumbre da singularidade de alguém é um esforço e um mérito para poucos. Não à toa os analistas em suas poltroninhas se dedicam a isso com uma obstinação fascinada e uma trajetória muito mais marcada por fracassos do que por sucessos – muito provavelmente porque se apaixonaram demais pelas teorias brilhantes que aprenderam. Acontece.

Mas vislumbrar o que só ela tinha – a despeito dela e dos seus discursos místicos – era realmente uma coisa diferente. Todo o ambiente parecia se modificar, como se quisesse acolher a beleza que se mostrava quando ela, soberana, se perdia na própria paixão pelos assuntos. Era assim que eu aprendia, momento a momento, que nem sempre é preciso apreciar aquilo de que se fala, pois o próprio falar como uma musa que fala ao poeta (que me perdoem a comparação gasta) pode ser mesmo algo divino. Embora, pra ser bem sincero, tenho a impressão de que muitas vezes ela falava não para mim, mas comigo, em uma região que não consigo acessar por outros meios além dos sonhos ou da escrita.

Não bastasse sua voz, sua cadência hipnótica – e, para suas amigas e alunas, sua capacidade de descortinar um fio de sentido nas suas vidas caóticas – havia ainda o quanto tudo isso parecia vir do seu corpo quase como uma emanação. É engraçado o resultado que vem de quando você se demora em observar algumas pessoas falando: seu corpo parece não comportar o tamanho da própria fala, quase como se testemunhasse que a linguagem entrou ali meio a fórceps – como é com todos nós, aliás. Apesar disso, existem algumas pessoas cujo corpo condiz e se alinha com a voz e, no caso dela, seu corpo, seus trejeitos menores – como a maneira que fazia semicírculos com cada mão quando parecia oferecer duas possibilidades – tudo parecia em coerência e coordenação. E isso tinha um efeito bastante sedutor, apesar das intenções dela em contrário. Parecia também que ela gostava de fazer com que as palavras rolassem por sua boca incessantemente, como se ela fosse uma sereia que por uma razão qualquer ficava hipnotizada pelo próprio encanto tão logo abrisse a boca. “Karma”, ela diria. Talvez. Mas dessa vez era o dela.

Qualquer homem que a via se sentia tentado em leva-la para cama num primeiro momento, quase que de bate pronto e suponho que, se perguntados, não elencariam apenas a beleza. Essa pode ser bem plana, afinal. Falariam algo como “um não sei o quê” ou, se forem blasé um je ne sais quoi.  Esse encanto se perdeu em mim por uma razão qualquer nos primeiros momentos. Não que não tenhamos transado tão logo nos conhecemos. Mas foi por uma razão bem mais aborrecida do que o corriqueiro encanto que ela destilava ao falar. Conto pra vocês outro dia.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

Comments

comments