Cinco letras

Cai a água gelada nas costas, e a zanga espúria que sinto tem seu cheiro. Sentimento de cinco letras, como a folia que me brota no peito com o lembrete de que você usou o chuveiro antes de mim e mexeu na temperatura que deixo como padrão, sendo um pouco dono comigo do meu cotidiano.

E me preenche a alma ver tão palpável a nossa intimidade.

De poder deitar nu em pelo um do lado do outro sem compromisso de sexo, porque a gente pode desnudar nossa alma, e isso é que tem urgência.

De antecipar as piadas ruins um do outro, e ainda assim continuar achando graça delas.

De ter se tornado natural sem a gente se dar conta que não importa o que aconteça, o desfecho da noite e os dias seguintes são sempre compartilhados.

Também tem cinco letras mania, como todas as suas que me aquecem a rotina. A mania de reclamar que não desligo meu computador e que não tenho backup. A mania de pedir para ouvir os áudios alheios que ignoro – e de se incomodar por se ver tanto em tanto de mim. A mania de comer de colher e nem sequer usar como desculpa sua ascendência de outra cultura, porque você fica confortável com a sua esquisitice peculiar, que já se tornou meu porto também.

A mania que não é exatamente sua, mas que de alguma forma transborda de nós, que faz nossos amigos nos shipparem tanto juntos a ponto de não fazer diferença se somos ou não de fato um casal, porque o que somos, como somos, é tão irrefutável que irradia.

E a mania principal, a minha, de gostar de sentir você a meu redor, por você ter carregador, escova de dentes e toalha na minha casa, fato que só reflete o espaço que te abri, ou que você abriu e do qual tomou posse na minha vida.

Cinco letras.

Tal qual o preto profundo dos cabelos. Tal qual a pinta na orelha direita. Tal qual o jeito de fazer base de dança. Tal qual o choro da risada excessiva por alguma coisa de que só nós dois achamos graça. Tal qual o ardil de uma superfície muito pacífica, mas que sabe o caos das entrelinhas.

Como reparar que minha respiração mais profunda, quando estou perto de você, termina em um ganido, quase imperceptível.

Com cinco letras também se escreve a palavra que de primeira ao olhar inocente evoca a ternura, mas é no verbo, na ação, que ela descortina a verdade mais profunda dos sentimentos. E se nesse aparente contraste das cinco letras não vagasse pelo sublime e não se rebatesse no choque, como poderia descrever nós dois? Como nós dois seríamos qualquer coisa outra que não estas, logo estas, cinco letras?

Afeto.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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