Como Deus planejou

Decoro texto, e o fundo é o álbum da tua banda preferida, como se nossas singularidades pudessem de alguma forma misturar de novo nós dois.

E me vem teu cheiro, mais por necessidade conjurado do que por acaso acontecido.

Nos corredores do aeroporto. No detector de traços. Na poltrona que não reclina. Nas muitas pessoas que, indiferentes, passam.

O funcionário impaciente que me tira do transe só expõe o fato do quanto você esvazia minha mente de qualquer coisa.

Isso se tornou fácil.

Difícil é qualquer outra coisa conseguir esvaziar minha mente de você.

Me estapeia a fatal realidade de quantas coisas boas (por isso, não apesar disso) ainda são ruins. Partidas indevidas mesmo pré-planejadas. Fins intransigentes se insinuando em começos.

Bebo o café despersonalizado em copos utilitários. Grãos mal moídos e corpos minuciosamente vestidos. E a parte de mim – bem significativa, aliás – que deixei em você.

Nada do jeito que deve ser.

Mas essa ideia toda é sua, não minha, e por tua, tão particular, me inspira. Você em seus detalhes.

Me toma a voz de tenor agudo que se revela na empolgação de compositores e madrugadas.

Mais ainda me tomam os médio graves que fazem do teu toque na minha pele autoria.

E a convicção estruturada da opinião, mas que ainda permite delegar a mim o prazer e o prato.

E se a enarmonia dos cabelos não se afinar mais?

E se o tapete vermelho se enrolar de volta?

Afasto os pensamentos no rastro do avião tomando a pista para levantar voo.

Com ele, deixo minhas asas voarem junto.

Eu deveria te deixar aqui, correndo os dedos pesados no seu habitat. Mas tem como?

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.