Desabrochar

E chegou o dia no qual o risco de permanecer apertado(a) em um botão era mais doloroso do que o risco necessário a florescer – Anais Nin

Um botão de flores que lentamente tende em direção aquilo que o ilumina qual girassol nos aparece enquanto uma questão em torno do caminho da vida. Assim o é porque o botão de girassol, tal sua última forma, segue aquilo que o nutre e lhe confere o nome que lhe é próprio. O que é um nome? Nome, nos diz Julieta, é algo sem tanta importância assim, uma vez que “aquilo a que chamamos rosa, se outro nome tivesse perfume igual teria!”. O girassol roda em torno do sol e isto o confere seu nome. Se Julieta está certa, admitimos então que se girassol se chamasse outra coisa tão belo seria seu bailado em torno do sol quanto o é agora. Espiral continua frente a luz daquele que o leva adiante, que o nomeia, o girassol tem a particularidade de ser nomeado por aquilo que faz. Sua identidade é seu ballet em direção ao sol tanto quanto a da rosa é seu perfume e seu espinho. Assim sendo, o nome do girassol de fato não importa, mas apenas porque seu nome deriva de seu movimento. Mover-se em torno do sol: girassol

O que é, no entanto, um botão de flor antes desta tomar sua forma final? Promessa, futuro, vida vindoura que se nutre em um estado intermediário entre o ser e o tornar-se para melhor vivificar seu arredor com o espetáculo de seu florescer futuro. Um botão, em si mesmo, é apenas essa promessa maluca de que se não houver descuido, se tudo der certo, haverá vida bela, curta e sublime. É uma promessa de vida e de gozo, num certo sentido. As mais belas flores, entretanto, nascem do descuido e da adversidade. Essas flores aprenderam a lição do Riobaldo, de Grande Sertão: “viver é um descuido prosseguido”. É também “muito perigoso”. Flores do ad-verso florescem do seu próprio jeito, do seu próprio verso, portanto. No seu próprio caminho, que é de onde vem verso: Wer, indo europeu que diz o retorno do arado numa linha paralela à primeira já feita. Vai dar em Weg e Way, que é como alemães e ingleses/americanos caminham na linguagem, respectivamente.

Vê-se já de entrada que esse texto é sobre caminho. O caminho é aqui tomado a partir dessa metáfora belíssima de alguém que sente mais dor no pânico de se conter do que no seu florescer. Clarice Lispector anda na contracorrente disso tudo, em parte. Em Medo do desconhecido, alguém feliz, provável que a própria autora, morre de medo de sua felicidade e declara “Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade.” É que ela, a personagem, não tem a quem dar sua felicidade e ela “começa a lhe rasgar”. Pânico terrível de ser feliz, medo de não ter mais para onde ir porque sempre se foi contra a felicidade e sempre foi fácil de encontrar uma porta aberta para a tristeza. Talvez a tristeza seja esse caminho paralelo que Wer, a origem de verso poético, mas também de caminho, indique. Talvez abrir a linha de retorno, paralela, seja a condição primeira para alguém conseguir ir.

O que chama a atenção, nessa metáfora do botão e na palavra Wer é sua oposição completa. O que floresce não retorna a botão, o que vai e volta é pendulo que não fica em ponto algum se não perde o outro lado. Como um caminho pode ser só de ida? Florence se defronta com isso também em uma de suas músicas, Dog days are over. Comicamente ou não, a felicidade é violenta, a atinge como um trem, uma bala na cabeça. Felicidade mortífera da qual se foge em direção à mediocridade do pretérito deliciosa e cuidadosamente imperfeito, fonte maravilhosa de reclamações e de vitimizações. O florescer exige um abandono da estagnação prévia “se você quiser sobreviver”. É que felicidade e abandono do passado caminham juntos.

Nada mais ridículo para do que propor que se busca um caminho porque ele quer simplesmente ser feliz. Um caminho não é nunca sobre felicidade simples. Essa a gente encontra ali na juventude e a juventude, já sabiam Gessinger e os Engenheiros do Hawai, “é uma banda numa propaganda de refrigerantes” Desabrochar, por sua vez, é doloroso, envolve risco de queda num abismo. Kierkegaard falava que, frente a um abismo, sentimos “a vertigem da liberdade” porque podemos efetivamente pular no abismo e cometer suicídio ou andar e ir embora. Nada nos garante do que faremos desse encontro: liberdade. Já Nietzsche dizia que ao olhar para o abismo ele olhava para dentro de nós. Esse encontro nos mostra que nada nos garante do que somos: vazio. Essas três artistas em sentido forte (Nin, Lispector, Florence) nos dizem quase a mesma coisa: ignorar a vertigem e saltar é nossa única possibilidade de salvação da morte porque mortos já estamos, já que “para morrer basta estar vivo”. A diferença é que agora pelo menos podemos escolher como.

Texto publicado originalmente aqui.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.