Detesto

Primeiro, eu detestei o convite. Você me estendendo a mão me chamando pra uma dança. Fim de noite, músicas improváveis, salão já vazio.

Recusei. A recusa não foi a ti, mas a começos óbvios. Nós não sabíamos, porque saber demanda olhar o passado, e não premonições ancoradas em intuição feminina ou ter crescido com parentes ditos médiuns.

Saber demanda analisar o que já foi, com seus efeitos no corpo e no ego, e éramos prenúncio de primavera, o florescer.

Então, recusei, e fiz, eu mesma, a ti o meu convite.

Tua boca, afluente do universo.

Porque é na boca onde se dá o conhecer.

Bebês põem tudo na boca porque é assim que se experimenta o mundo. E o peixe morre pela boca porque começo só pode ser começo se, ao mínimo tropeço, puder se tornar fim.

Nada se desenrola se não partir dessa tênue – e embrenhada – dicotomia.

Então, eu detestei a decorrência. Eu escolheria quando e como, é claro. E, mais uma vez, você cedeu ao meu cortejo.

Então vieram as insistências, as reincidências. E eu passei a detestar perceber que eu não mais ditava as cartas. O jogo já não estava mais nas minhas mãos; dele, eu já era uma peça. A ser embaralhada e carteada a seu bel-prazer.

É nesse ponto que a gente sabe que perdeu. Não quando se pega vulnerável, porque ainda é possível adentrar jogos de histeria. É quando se acata a vulnerabilidade, quando a abraçamos de bom grado e não só achamos interessante mostrar como a ostentamos.

Então eu detestei. Tudo. O gosto da saliva, o chupão do dia seguinte, haver um dia seguinte. Haver muitos dias seguintes, aliás.

A gente se ilude que a amargura decorre da finitude, mas é o contrário.

O problema não são as coisas que acabam, mas aquelas que, na instabilidade da própria inerência passageira da vida, vão ficando.

Quando a gente acha inofensivo e baixa a guarda. E, então, não sabe se baixou de fato, ou se ela foi baixada. E o abrir portões não é algo que se desfaz facilmente.

No final, só consegui detestar a mim. Mas não por mim, claro que não. Pelo tanto de você que pulsa aqui.

Chico disse que só se perdoa a quem não se ama. Pois bem, meu caro amigo. A quem se ama não se perdoa. A quem se ama, se detesta.

O que mais meus olhos lhe diriam?

Detesto.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.