Vem Conversar

Escaparate

Eu vou fingir
Que o seu cheiro não resistiu às estações grudado nos meus poros
Que as minhas paredes absorveram sepulcrais todos os graves de barítono
Que seu suor não pesa mais o ar desse apartamento

Eu vou fingir
Que ouvir S sibilado todos os dias me fez parar de pensar no seu
Que despersonalizei a revirada de rosto, de olhos, de meio sorriso
Que onze categorias abarcam todas as pessoas do mundo, mas que o teu signo deixou de ser só teu

Eu vou fingir
Que não chegam aos meus ouvidos os agudos distorcidos pelo desvio de septo
Que suas interjeições não desencadeiam pensamentos sinestésicos
Que é certo o teu toque estar em qualquer lugar remoto e alheio a mim

Eu vou fingir
Que não lembro do quanto tem tato nos nossos começos
Do quanto falta jeito até o reencaixe e de como, quando acontece, é devastador
Que não vem me visitar a familiaridade dos durantes e dos depois

Eu vou fingir
Que não sinto o tesão descomunal pelas tuas mãos, pelas tuas pintas, pelas tuas sobrancelhas, pelo desenho dos teus lábios
Que não me lembro de cada centímetro do desenho dos teus lábios, aliás
Nem de cada centímetro, entre a trégua da espera e a ignição da presença, em particular daqueles no meio das tuas pernas

Eu vou fingir
Até me enganar no meu próprio teatro, é claro
Que querer rápido foi empolgação
Que apostar foi projeção
Que procurar foi transferência
Que reincidir foi carência
Que persistir é tesão, amizade colorida, nostalgia, qualquer coisa no reino dos impulsos ilusórios

Eu vou fingir
Até convencer a mim mesma do mesmo jeito que você finge que fez com você
Que nós dois nunca fomos amor

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

Comments

comments

Sair da versão mobile