Existirmos, a que será que se destina?

Caetano não é dos meus autores de música prediletos, mas, quando acerta, também, acerta em cheio. Essa música, tocada em ritmo de forró lento, é uma linda homenagem a um episódio do cantor com o suicídio de seu colega Torquato Neto e a maneira pela qual o pai deste último acabou por consolar…o próprio Caetano, que vinha oferecer suas condolências! Esse trecho, repetido constantemente, também serviria bem para ilustrar o inusitado da situação, já que o amigo, em tese, consolaria o pai, vez que este estaria devastado.

Esse sem sentido que virou música me parece um bom começo para uma reflexão sobre o que significa enxergar ou dar um sentido para algo. É bem verdade que uma das maiores dificuldades do nosso dia-a-dia – camuflada pelo sempre crescente excesso de coisas fugazes que aparentam ser problemas reais – é o preenchimento da nossa necessidade desse sentido para as coisas. O que eu quero dizer com isso é bastante simples: agir de maneira absolutamente desprovida de sentido, sem se preocupar com como aquilo produz a existência que você quer ser, é uma forma muito simples de enlouquecer alguém.

Assim, mesmo atividades que, vistas de fora, não fazem nenhum sentido, ganham algum. A corrida de ida e volta pra casa depois de uma jornada de trabalho ganha o sentido do combate à ansiedade (mas, em termos “materiais”, o indivíduo só correu pra longe de casa e, depois, pra perto); o levantamento de certos pesos em certas ordens, a famosa musculação, vira treino e guerra diária consigo mesmo, uma espécie de movimento do grande guerreiro contra as adversidades da vida (mas “materialmente” a pessoa só levantou uma barra reta com pesos na ponta por 4 sets de 12 repetições; o trabalho repetitivo e monótono do dia-a-dia, submetido muitas vezes a condições precárias de transportem vira a dignificação do homem, o único jeito dele ser passível de ser chamado de alguém capaz (mas, na verdade, ele só vai e volta pra casa e entrega sua mão de obra para ser subremunerado em relação ao que produz).

O contrário disso, ou seja, ser obrigado a fazer algo sem sentido enquanto sem sentido, é uma punição tão cruel que o indivíduo prefere a morte. Dostoievski nas suas Memórias da casa dos mortos descreve bem como alguns presos tinham um trabalho completamente desprovido de sentido: carregar pedras pesadas de um lado para outro, esvaziar o carrinho, entupir de novo o mesmo carrinho com as mesmas pedras e levar de volta ao lugar inicial. A consequência disso é o enlouquecimento do indivíduo que, torturado mentalmente de maneira brutal, começa a arrumar maneiras de, inicialmente, sair e, posteriormente, se matar.

Mas, se é assim, de onde vem o sentido? Porque as atividades repetitivas desse indivíduo poderiam ser facilmente encaixadas num “treino” de qualquer coisa e ele, ainda que não soubesse nada de Educação Física, poderia inventar brincadeiras com o seu trabalho. Pois bem, o problema do sentido é que ele não advém nem só de fora, nem só de dentro, mas de uma conjunção desses dois lados chamada liberdade. Se, por um lado, a liberdade é atemorizante como quando cantamos chorosos “o que que eu vou fazer com essa tal liberdade?” (franceses têm Sartre, nós temos Alexandre Pires, chora, França), por outro ela é a pré-condição para a escolha e, por conseguinte, para que atribuamos sentido a algo.

Funciona mais ou menos assim: quando queremos treinar, escolhemos o que treinaremos, por quanto tempo, se seguiremos algo e por aí vai. Tudo isso indica o que gostaríamos de nos tornar a partir dos meios que utilizamos para tal. Por um lado, o que gostaríamos de nos tornar é escolha nossa e inteiramente nossa; por outro, os meios que utilizamos para tal e, muitas vezes, a própria existência do que gostaríamos de nos tornar vem do mundo (p. ex.: existirem doutores em filosofia psicanalistas foi um fato do mundo que me disse que eu podia ser um). Nessa conjunção de fatores, escolhemos e nos responsabilizamos por nossas escolhas, mas, nesse momento, só temos a certeza de termos abandonado uma série de outros caminhos que não tomamos. Só muito mais tarde é que veremos os resultados e nos tornaremos quem gostaríamos de nos tornar na hora que fizemos a primeira escolha, mas, como o desejo é sempre falta, já estaremos desejando ser outras coisas também. O caminho para a chegada até o objetivo, no entanto, nos conferiu um sentido, no duplo significado que a palavra tem: direção e inteligibilidade, ou seja, é a partir daquilo que orientamos nossa vida e é a partir daquilo, também, que passamos entender parte de quem somos.

A pegadinha toda é que nem sempre temos vontade de nos responsabilizar por nossas escolhas. Às vezes preferimos fingir que nada é nossa responsabilidade, que tudo “simplesmente aconteceu”, que “não temos nada a ver”, que “o outro que é doido” e assim vai. Não à toa, uma parte importante do processo analítico é justo implicar o sujeito que nos procura na sua própria vida. Se nada dá certo na sua vida amorosa, essa pessoa é a única coisa que se repete em todas as relações; se não consegue bons relacionamentos de amizade, são todas amizades dela; e assim sucessivamente.

Um jeito de compreender isso é entender que é você não o outro que está dando certos sentidos pras coisas na sua vida. Não é função desse novo outro, seja terapeuta ou analista, reiterar sua percepção de que os outros devem te dar algum sentido. Ao contrário, o dever dele é se abster de te fornecer qualquer fechamento em um sentido e tornar sua vida mais plural, fazendo você enxergar, a partir dos múltiplos sentidos possíveis, que não existe um único sentido certo, mas um sentido que é mais a sua cara. Afinal de contas, se é você quem tá buscando um sentido, é você quem deve encontra-lo.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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