Fogo

“É preciso rever essa coisa de amor”, ela pensava.

Baixa. Pele alva. Cabelos ruivos, mas cacheados, como se a natureza quisesse dizer desde o princípio, desde seu nascimento que a mistura, a hibridização, seriam suas marcas.  Se via contemplada no entre. Sempre no hiato. As chamas às quais seus cabelos rigorosamente curtos aludiam eram as exatas que corriam por ela de cima a baixo. A destruição no caminho, sim, mas nunca calculada: ocorria. Deixava tudo intacto, fosse caso de escolha. Não tinha culpa se os homens preferiam tudo queimar, como se a uma deusa fizessem culto e de sua vida, a pira de sacrifício. Ela mesma, em seu culto pessoal, tinha como única imagem a sua, mas mesmo essa ela indagava: era sua mesmo? Devinha irremediavelmente deslocada de si mesma. Pior. Gostava disso. Ultimamente Se via querendo ser deslocada, mas só sabia confirmada a cada passo. “Mundo previsível, homens previsíveis”, pensava. “Me desloco eu mesma. Saco”.

Não sabia, até então, o que era a rejeição. Sabia apenas o que era ser adorada, amada, ter mesmo os dejetos de seu corpo valorizados – havia mesmo aqueles que criam precisar ascender à dignidade de cheirar seus pés cansados de uma jornada de trabalho. Em seu sadismo e desprezo de mulher, ria-se disso. “Sexo frágil…” pensava num tom sarcástico. Se ela era frágil, eles eram…? Ridículos, todos. Bastava uma palavra, uma aparição, um olhar e todos: seus súditos. O amor não era para ela uma promessa, mas uma certeza. “Ó, meu amor, por que sois tão fácil?” Pensava a cada conquista. Se é que ainda se chama conquista aquilo já se sabe seu por mero desejar. “Tédio”, mas não apenas como o que vem do outro. Se entediava consigo, é verdade, mas se via como mais alteridade do que aqueles que teoricamente seriam outros. Seriam: promessa irrealizada desde a infância. Esperança infantil que não morria de uma vez, mas morria aos poucos. A dor maior era essa: uma morte prolongada de algo que se espera.

Via que o amor era uma intensidade todo caso perdida para ela. Não porque não fosse capaz de sentir: era completamente capaz, como todos os viventes (tristes) dessa terra. Mas para sentir o intenso era preciso não ser capaz de prever cada movimento com precisão. Era preciso uma surpresa. E uma surpresa nunca é precisa: ela emerge. E era difícil se surpreender quando as coordenadas de seus parceiros não eram mais do que latitudes exploradas e óbvias. O macho-que-quer-comer-com-força; o-sensível-que-finge-que-só-quer-conversar; o-intelectual-que-só-fala-de-si. “Padrões, padrões em todo canto”, pensava. E ela não os construía: eles os eram quanto mais acreditavam ser singulares. O patético geralmente vinha daí, desse descompasso entre a certeza que tinham de ser diferentes e do quão comum, aliás, comuns não, banais, eram. O convívio mostrava bem: a sensibilidade de um era não apenas uma superfície tosca, mas pouco trabalhada; a intensidade do que comia com força, nada mais do que o reflexo do incomodo com sua própria fraqueza; o que falava de si não era apenas surdo a ela, mas mal se escutava. Suplantavam seu desespero com o silêncio triste das ações, como os supliciados que por aí vagam de mão em mão.

E ela? Ela era como um lutador que via tudo e câmera lenta: cada movimento, cada passo, cada fala, cada respiração mesmo, era previsível e o contragolpe, inevitável. O ponto fraco, exposto desde o princípio, era irresistível para alguém que nele estava acostumada tocar: um elogio à inteligência para este, um sorriso para aquele, um toque demorado no braço desse outro…e a falta, que neles antes se via tão grande, parecia menor. Tosco que eram, acreditavam na possibilidade dela se conformar a pouco que eram sem saber. Viam o que queriam ver, no fundo. E ela sabia disso, a camuflagem não era para o ambiente, mas uma segunda pele. Não era ao sinal de perigo, porque o perigo era ela mesma. Um perigo do qual todos queriam se apossar. A soberba era, como sabia bem, sua maior amiga.

 Fácil, furtivo, preciso: a conquista para ela era um gesto sutil, como para muitos é a execução de uma tarefa rotineira. A queda – esperada – do macho frágil era apenas questão de tempo. Seu gigantesco ego, sua gigantesca necessidade: faces de uma moeda que ela podia ver diante de si com imensa facilidade e trocá-la pelo que bem quisesse. Banal que era, trocável se tornava. Bobos, no fim. Para muitos, as faces não eram mais do que antagônicas peças de uma pessoa perfeita demais, arrogante demais, problemática demais. Para ela, o demais sempre foi sinal de uma imperfeição gritante se manifestando pelos poros. Grita pela pele o que não pode ser falado. Tinha até cheiro.  Excesso não era sinal de possível generosidade, mas de um… vazio, reticências sendo o máximo que tinham para pôr no lugar. Ela, fazendo as vezes de pequeno preenchimento desse buraco, sabia que eles gostariam daquilo: o pouco que ela daria era melhor do que saber-se vazio.

Mas algo tinha dado errado essa noite.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

Comments

comments

Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.