Vem Conversar

Gratidão

Um corte fino, superficial, suave e uma dor ardida. Era um corte do qual se via sangue, verdade, mas nada extraordinário, nada diferente do que já se fizera várias vezes. Cortara-se fazendo comida, um corte entre tantos cortes. Por um estranho caminho, aquilo a lembrou de tudo o que perdera quando sentiu seu primeiro grande amor ir embora e o sangue, porque escasso dado que o corte era pequeno, parecia mesmo uma metáfora das lágrimas que não caíram quando o término veio.

Sua vida era mais ou menos o seguinte: amor: inexistente. Trabalho: extenuante. Dor: constante. Era isso o que tinha e isso parecia já devia parecer muito, especialmente porque se esforçava para seguir os conselhos de gratidão que recebia por um aplicativo. Sentir-se grata quando só se sente cansada é já esforço demais.

Olhava-se no espelho pela manhã o cansaço estampado no rosto era seu bom dia. Aquele rosto: a quanto tempo era seu? Não se reconhecia, não se sabia mais habitando aquele rosto, aquele corpo. Vivia como que voando de tarefa em tarefa, anestesiada pelo excesso de trabalho. E-mails em ordem, chefe apaziguado, fornecedores e clientes contentes. Rotina perfeita, obsessivamente mantida como um ancoradouro no mundo, como se manter todas as tarefas a mantivesse segurando na última ponta de terra antes da queda no precipício.

Enquanto trabalhava, rotina infernal de home office que seguia, encontrou uma foto do ex, despretensiosamente, no meio das notas fiscais. O coração reacendeu, o corte que cessara de existir doeu de novo, os lábios foram mordidos, o coração afundou e bateu no estômago que afundou com a força do golpe. Mas nada fez, apenas sentiu aquele corte latejando, lembrando do seu descuido de mais cedo, do descuido que era a causa do término de uma relação que ela tinha tanto mantido, cuidado, nutrido. Como aquele corte minúsculo, a cicatriz do término era pequena, mas insistente e parecia mais incômoda do que as dores mais doloridas, como se tudo decidisse esbarrar ali e incomodar.

Quase que ao mesmo tempo recebeu uma notificação com a pergunta “você já demonstrou gratidão pelo hoje?” Tomada de ódio, desinstalou o aplicativo e finalmente chorou copiosamente.

Texto originalmente publicado aqui.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

Comments

comments

Sair da versão mobile