Heterocromia

“Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.”
Vinícius de Moraes

Nós temos quinze anos e ela é o amor da minha vida. E digo, tão inocente e clichê, que os olhos dela me encantam assustadoramente como há de ser toda primeira vez. Ingênuo, conheci os olhos de Capitu antes mesmo da escola me obrigar a ler Dom Casmurro. Em silêncio, apenas olhando-a nos olhos, fixamente, percebo que a vida ainda não me ensinou a dizer suas cores, olhos de cigana: ora castanho pantanoso e amarelado felino; ora verde outonal, de neblinas tristonhas envolvendo as folhas das oliveiras – a depender da iluminação.

E, nos fins de tarde, entre as conversas demoradas sobre nada, pretexto para estar juntos – o sol vai se deitando e se escondendo no meio dos prédios, por onde escapam uns feixes de luz que incidem nos olhos dela e revelam uma cor rara de âmbar ao sol, e me prendem tal qual prende o inseto indefeso que fora capturado na resina pelo acaso. 

O tempo é infinito nesses olhos e já é noite enquanto estendemos as desobrigações da juventude. Os fios de treva se entrelaçam no céu – tal qual o cabelo a se enrolar na minha mão nos abraços tímidos e desajeitados de um apaixonado em silêncio – e nos olhos predomina um tom esverdeado de mar inquieto, como anúncio de tempestade e prelúdio do naufrágio, sem ela saber que eu já estava imerso sem salvação nessas duas joias marítimas destinadas a ornamentarem suas órbitas…

Teremos ainda tantos dias como esse, mas sempre parecerão insuficientes. E toda ânsia do encontro, de estar perto sem razão, se transformará em ânsia pelo reencontro quando ela partir a primeira vez. E eu esperarei em cada lágrima teimosa, em cada fim de tarde de céus azuis-e-rosa. Escreverei poemas sobre a espera sem esperar nada em troca. 

Um dia ela virá com os olhos passageiros visitar de novo a cidade e os velhos amigos. Nesse dia, nos beijaremos. Um beijo único e nada mais. No outro dia, ela partirá pela segunda vez e daí em diante decidiremos seguir a vida em outros amores. E seguiremos sinceramente entregues a outros beijos e outros abraços por anos e anos sem imaginar que teríamos uma segunda chance. Estar mais uma vez sob a mira da incerteza das cores e das mensagens que me endereçam, sempre instáveis. Se os olhos são espelho da alma, sua alma é absoluto mistério: o equilíbrio volátil entre as oposições do indefinível. 

Baile de formatura da faculdade. Uma pequena viagem até ela. Pegarei a estrada ensaiando coisas para dizer quando a encontrar. Mais um encontro de apenas uma noite e tanto para ser dito. Não era a brevidade do encontro que me roubava o tempo de dizer a palavras, mas a eternidade silenciosa dos olhos na qual me perdi mais uma vez. E ao beijo ao qual me rendi mais uma vez. E entre juras bêbadas e danças desengonçadas, o sol nascia e a estrada nos esperava para seguir caminhos diferentes mais uma vez.  

E a última vez não se anuncia, mas eu acredito ter sido essa indeterminada desunião. Depois ela mudará de estado – não apenas geográfico, mas afetivo. Já não falará comigo com as palavras doces que me envolviam ainda mais o seu olhar, onde cabem todas as poesias escritas e não escritas. E perceberei, finalmente, os tons acinzentados que nunca antes tinha visto em seus olhos. Os tons de verde e cinza se misturando como se mistura a lápide nos jardins calmos dos cemitérios no inverno. O fim do que nunca começou.  

Saberei que alguém se abismou nos olhos dela tanto quanto eu e que, dessa vez, o abismo foi recíproco. Um enorme vazio de possibilidades onde o amor poderá construir o que quiser. Saberei do casamento e saberei da sua filha. Eu nunca falei, mas queria uma filha que herdasse qualquer coisa de mim, com exceção dos olhos – os olhos deveriam ser os dela. Saberei que esse meu desejo nunca se tornará realidade, porém. O tempo vai passar e a minha alma vai envelhecer mais que o meu corpo. Saberei que nossos olhos jamais veriam as mesmas cores no mundo e o atraso no destino do afastamento teve autoria minha e de mais ninguém. Só, bebendo aos goles os arrependimentos, então, saberei dizer a cor dos olhos dela…

Nunca mais – dizia o corvo de Poe e era a frase que ela queria marcar na pele em tatuagem. O nunca mais pode ser a sentença que alivia ou assombro contínuo – a depender da iluminação – tão ambíguo como os olhos marcantes. Saberei que os olhos dela não podem ter somente uma definição. Digo, enfim, que os olhos dela que têm cor-de-saudade – outra forma de dizer o nunca mais que ora é conforto para o coração, ora é hemorragia sem contenção. No entanto, eu não sei disso, pois nós temos quinze anos e ela é o amor da minha vida. 

Matheus Moreto

Escrevo na ambivalência: dar voz ao que me falta o ar é silenciar o que não me deixa respirar. Psicólogo, pisciano, passageiro. Meio luz, trilha e cachoeira; meio caos e rolê bagaceira

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.