Andando no sinal distraído, Florence no ouvido, mais um dia de retorno de rotina: academia, ir até o mercado, voltar ao ponto de ônibus, casa, round dois da clínica, dia termina. Mais um dia, mais uma parte do passar que é existir numa solitude quieta e alegre, mais um momento do contentamento de sustentar o próprio peso, carregar-se a si ou, pedantismo intelectual, o sorriso de pagar a libra de carne. Sinal fecha, olho pros lados, confiro se posso passar: morar em São Gonçalo te ensina lições importantes sobre conferir e confiar. Atravesso uma, duas ruas, barraquinha de pastel, “dentista, senhor?” me oferece uma, “remove a minha pedra” se esgoela outra e sigo paradoxalmente calmo em meio ao caos hodierno, a calma destoando mais do que quaisquer coisas que poderia intencionalmente fazer.
Preparo-me para ainda mais uma travessia e, como demorasse o sinal, troco olhares com uma moça do outro lado e me vejo suspenso. Olhos muito pretos, tão pretos quanto vivos e grandes, olhar curioso, animado, desses que perscrutam à procura de algo. O quê? Qualquer coisa de diferente, beleza gritante porque discreta, cuja luz que deles advém possa iluminar e tirar-lhe o pudor discreto, adotado apenas para melhor se esconder em plena luz.
Desenconstrei de seus nossos olhos com marcada dificuldade para melhor admirar o desenho todo. O cabelo em franja cobre-lhe parte da testa e se presta, com isso, ao papel de moldura para os olhos, aqueles mesmos que descrevi logo agora. Olhando-os de novo os percebi num olhar de soslaio que conferia ao seu rosto delicadezas que seduzem os incautos com promessas. Combinando-se isto à pele parda e às tatuagens que se multiplicavam a cada vez que nova parte do corpo era revelada pelo vestido folgado que balançava sobre seu corpo, tinha-se, ali, a perfeita sedução do tango, que nada mais é que sua constante insinuação.
Sinal fechado, atravessamento autorizado (embora o real atravessamento já tivesse sido realizado) olhos ainda entrelaçados, buscando adivinhar qualquer coisa no outro – e minha vergonha da antecipação de que algo em mim havia sido encontrado não foi mais forte do que minha curiosidade para com a buscadora. Mirava a ponta de seu nariz quando percebi que seus lábios se abriram num lento, mas alegre sorriso, que não entregavam nenhuma vergonha ou mesmo quaisquer sinais de desconforto. Acostumada a ser vista? Alegria com o mútuo interesse? Prática constante de flerte? Impossível decifrar, ignóbil querer saber dado que o quase da descoberta é sempre melhor do que a certeza de qualquer resposta.
Quando os corpos se cruzaram tão menos distantes do que o espaço sugeria, posto que as almas se tocavam entr’olhos, percebi que ficaríamos para trás, fragmentos faiscantes de um dia comum, parentes toscos de uma estrela cadente. Ri comigo mesmo da ideia e acabei por lhe retribuir o sorriso de outrora. Entre os milhares de planos feitos em segundos e os planejamentos de vida toda, aceitei que a casaria com a linguagem do texto literário, único casamento possível que poderia realizar dela comigo, espécie de insistência do corpo em confessar ainda uma vez o mistério que dele se apoderou. Ao viver aquele breve cruzamento olhares, ainda que pouco tenha durado, foi fácil julgar: belos, tínhamos a alma nos olhos.
Ao revê-la hoje vindo na minha direção, decompondo agora os momentos das imagens na memória, percebo: não era apenas uma transposição do espaço que ocorria, mas do tempo. A covinha lateral, acabamento perfeito para um rosto que já convida, parecia, por isso, último detalhe colocado por aquele que é o mais paciente dos artesãos: o tempo. E, por ser perfeito artesão, permite-se ser passagem para tantos amores possíveis.