Marcas da última noite ao redor da casa

Marcas da última noite ao redor da casa: você aqui, me levando pro chão, e o vinho derramado do lado para provar; os lençóis como que retirados da cama, completamente testemunhas cúmplices da nossa noite de ontem; meu corpo, que você possuiu como quis, se lambuzou; tua boca, que sinto como que dentro de mim. Todos os elementos que me fazem pensar que essa relação é realmente para mim. Intensidade nunca descreveu absolutamente nada. É mais uma cadência, um movimento, uma ressonância. É isso: ressoamos.

Me olho no espelho, cabelo longo cobrindo os seios nos quais você tanto brincou ontem, pele bem marcada que não deixaria nada a esconder, sorriso que me vem imediatamente quando me vêm nossas memórias. Como tudo começou? Um encontro casual, é claro. Derrubou minha bebida, um pouco estabanado, tentou consertar, se sentou, começamos a conversar. Me pergunto se não foi de propósito, mas você jurou que não. Que bom e que pena. Que bom: agora somos. Que pena: se plano fosse, teria sido um genial. A Providência planeja para nós, sem problemas – não acredito nela, mas vá lá.

Chuveiro quente, relaxamento antes do dia longo de trabalho que virá. Mais momentos vêm à memória: as músicas tocando em sequência, uma playlist bastante estranha, que mais parecia um feitiço para me levar onde quer que fosse (onde vamos?); comida, que quando comemos pareceu se somar às coisas que fizemos, como numa alquimia (o que viramos?); a conversa, que não parecia exigir esforço, parecia fluir de lá pra cá e de volta com uma facilidade que só teríamos se tivéssemos nos conhecido (quanto duramos?).

Todas essas coisas não me vêm controladamente, num esforço: antes, me invadem. Como você me invadiu, de maneira sorrateira num primeiro momento, de maneira bastante franca, no outro. Pareceu mesmo uma mudança de estratégia, uma leitura de mim. Preferi assim, confesso. Me canso fácil daqueles que pedem. Me cansei, há muito, daqueles que deixam tudo na minha mão. Saber-se sedutora é um encanto, meu amor, mas é também um peso. É também uma chatice. Manter um certo mistério, atrair aos poucos, não deixar todas as cartas…às vezes você quer ser passiva, não a ativa. Você quer ser a presa frágil que te prometeram desde o começo e que você nunca foi, por vergonha ou falta de vontade. Experimentar esse outro lado: não é também pra isso que servem nossas fantasias?

Então, nessa noite, cedi. Meu quarto testemunha isso. Minha cama testemunha isso. Meu corpo testemunha isso. Meu banho testemunha isso. E agora, você também o testemunha. Te faço espectador da minha doação de mim a você. Aceite, não é um presente, é um futuro.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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