Melancólica

Coloco Rô Rô pra cantar e a voz dela já me traz aquela atmosfera de ontem de novo. Essa música um pouco lânguida, essa voz de dança lenta de cinema, esse beat que me lembra como você esteve no meu corpo ontem e eu no seu. Clichê, não é? Mais um de muitos, como tudo aquilo que é do amor. Por que a gente busca tantos clichês de maneira tão obstinada? Não sei, mas mesmo estudar tem sido um clichê pra ser mais uma intelectual que se diferencia por ser inteligentinha, ganhar a palavra, o olhar, o amor de muitos, o olhar de que fiz algumas ganhar sentido… Tudo tão mais vazio do que a aura que a gente dá de algo grandioso. Tudo mais mesquinho e mais… humano. Me pergunto se é isso mesmo que quero toda vez que começo a escrever porque já tenho consciência de tudo isso.

Tomo o resto do vinho de ontem sendo embalada por essa música e tentando escrever algumas palavras minimamente decentes para publicar. O foco devia estar ali, naquela encomenda de trabalho volumosa que me daria mais um mês de sustento. Mas o foco nunca é tão bem ajustado assim, qualquer um que tira fotos sabe disso, é tudo uma questão de jogar com a luz que se tem. E você jogou luz em uns pontos meus que eu não vejo faz tempo.

Deliro um pouquinho pensando nas possibilidades de a gente vir a ser algo. Você, instável, errático, confortável com a melancolia; eu, buscando sempre a intensidade, sempre esquecer que a melancolia pode bater na porta a qualquer momento da mesma forma que você bateu na minha. Você me disse que a melancolia pode suspender a realidade vivida e eu me surpreendi: á não temos melancolia o suficiente? “Não”, você me diz, “porque as pessoas aceitam tudo que se lhes oferece como se solução fosse. O melancólico não faz isso” e me coloca pra pensar que talvez precisemos de mais melancolia. E aí você me suspende da minha realidade, mesmo depois de ir embora.

Não entendi bem como tudo aconteceu. Primeiro um toque inocente, os dois indo pegar a mesma coisa na prateleira, bem comédia romântica ridícula. Não sei o que te possuiu pra falar comigo, mas agradeço a seja lá qual for o espírito. Dois dias depois, nos quais quase nada conseguia fazer a gente parar de falar das coisas mais variadas – do universo místico que me fascina ou o universo tão racional que você descortina – nos encontramos e trepamos da forma mais intensa que trepei em anos. Um corpo presente que me aterrava ali, não só nos toques, mas na força que imprimia no meu corpo, nas estocadas, nos abraços, nos puxões de cabelo, no olhar que basculhava entre intenso e carinhoso, nos tapas…a entrega foi diferente, fui arrastada pra um lugar de mim que já jurava que morreria inóspito. Mas não.

Os melancólicos não aceitam qualquer coisa, você diz, na verdade eles não aceitam nada. Fiquei nessa frase porque parece mesmo que você tem um grande tesão nas melancólicas e quase que sinto que você viu a melancolia em mim. Mas vai ser foda me manter melancólica do teu lado.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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