Alguns querem devorar, outros querem ser devorados. Alguns oferecem a mordida, outros, o beijo. A maciez dos lábios e o corte dos dentes, talho de gozo e morte. E não há escape para as leis universais da natureza, do encadeamento da ordem no matar e no morrer, a perseguição pelo equilíbrio radicado na assinatura do que nos faz quem somos. Ora caça, ora caçador.
De caçador, já me vi terrível e egoísta, sobrevivendo a qualquer custo; ou quase a qualquer custo, pois já me vi sendo horrível de tantas formas, mas nunca ao ponto de profanar meus lábios ao dizer “eu te amo” sem realmente senti-lo. Não ao ponto de prender passarinhos para tentar lembrar de como era voar no barulho do batimento desesperado das suas asas dentro das gaiolas. Alguns querem usar, outros querem ser usados.
De caçadora, você veio me usar. Não, você não me amou um segundo sequer. Amou a minha disponibilidade para acolher sua vulnerabilidade; amou o meu cuidado com a sua ferida; amou a minha companhia para sua carência. E isso, meu bem, não é amor, é vaidade. De nada vale chegar com olhar bem-intencionado – e coração despreparado – se não conhece a verdade do desejo por detrás da intenção. Usou-me enquanto suas asas se recompunham da queda para um outro voo. Afinal, a sensação de ser estar vulnerável e ser potencialmente caça nos torna instintivamente caçadores.
Sobre a vaidade os leões entendem bem. É a mesma vaidade que vai te impedir de perceber o quão cruel e prejudicial foi, mas eu entendo. Quem gosta de sentir a sombra pesar sobre si? Que rei admite suas falhas afinal? E faz parte se reconhecer meio monstro, desagradável, meio bicho, animalesco para destronar esse lugar imaculado onde se senta o nosso desejo por ser quem queremos ver no espelho e não quem realmente somos. De sentir o que é supostamente impuro, como a raiva que se transpassa intencionalmente nessas palavras.
A suspeita de que teu amor por mim era pouco esteve sempre nos arredores; só não podia imaginar que não era pouco, era nada. E, sim, talvez você nunca admita isso, pois isso revelaria o seu lado negativo, que eu sempre vi e aceitei sem problemas. Alguns querem abusar, outros querem ser abusados. E eu sempre soube que não havia reciprocidade, mas eu escolhi ficar. Por outro lado, penso que, se o que você sentiu foi genuinamente amor, eu sinto pena disso que o mundo te fez construir dentro de si e te ensinou a reconhecer como amor.
E isso pode soar como vitimismo, e o é em certa instância, confesso, afinal, fui vítima da sua irresponsabilidade e do seu desconhecimento sobre si; e fui vítima, sobretudo, da minha teimosia esperançosa e de não ouvir minha intuição, ou eu estava te usando também para me ferir, quem sabe? O perdão que concedo a mim é difícil e vagaroso, pois não sei como pude me deixar neste lugar de não-amor por tanto tempo. Já o perdão a ti se perdeu para nunca ser encontrado feito presa arredia – e para isso, eu me isento de me fazer caçador…
Eu poderia cuspir tudo na sua cara e esperar que isso te faça melhorar minimamente como pessoa, mas, como meu objetivo é validar as sujeiras e indecências do caráter, a minha vingança é te deixar viver uma vida sem se conhecer; ser um estranho em si, com o ego que lhe nega a autoconsciência. Da mesma forma que o amor me foi negado, eu te nego essa possibilidade de evoluir. Pelos caminhos dos delírios de falsa elevação, rodeando-se de supostas figuras de luz e sem conhecer a própria sombra e, portanto, sem conhecer a verdadeira luz.
Há uma grande diferença entre fazer com a intenção de ferir o outro e fazer sem simplesmente se importar se vai ou não ferir o outro. Ambas nocivas, mas uma pressupõe a aceitação de si, enquanto a outra, a negação. Eu não vou guardar coisas boas, eu não vou ser grato ao que passou. Gratidão se demonstra por algo que foi recebido, não? Aqui não chegou nada além de um afeto devastado procurando lar; de um orgulho ferido com sede de tempo para descansar.
E cada dor tem um tempo de virar palavra. Se não ditas, torna-se o silêncio o meu caçador, pronto para me atingir com minhas próprias armas, que lhe concedo. Então, é preciso atear fogo na mata selvagem para expor toda a planície antes das flores formarem cobertura nas futuras estações. Dizer até não precisar mais dizer, a palavra arder até o silêncio ser confortável cinza.
As palavras têm poder. As palavras têm cura. Nem toda história é uma história de amor. Essa foi realmente apenas uma história e as histórias sobrevivem ao serem contadas repetidamente, perpetuadas entre as gerações. Você é a história que eu vou contar uma única e última vez; o suficiente para reservar-te o silêncio até o esquecimento, o eco que se enfraquece em propagação na cova dos leões.