Vem Conversar

Não é sobre nada e não está nada bem

“É sobre isso, e tá tudo bem”. A expressão popularizada por memes nas redes sociais e integrada ao vocabulário das pessoas antenadas no cenário atual responde ao que poderíamos considerar uma ‘boa intenção’. ‘É sobre isso’ é a frase que as pessoas dizem quando se reparam com algo que toca, que faz pensar, que abala, ao que, em psicanálise, chamamos de insight, aquele momento em que se percebe algo, que a lâmpada de desenho animado se acende sobre a cabeça, ou, como os mais antigos diriam, quando a ficha cai no orelhão. Quando estamos em sessão, alguns pacientes mais jovens realmente respondem um animado ‘é sobre isso’ quando os mistérios do inconsciente são revelados.

A expressão é comumente seguida de ‘e tá tudo bem’. Na verdade, as duas frases funcionam de forma separada, respondem a coisas diferentes, mas não é incomum que caminhem juntas. ‘E tá tudo bem’ é a autorização que as pessoas se dão para poderem expressar a impotência frente a algum monstro que se apresenta. Estou com câncer? Um ente querido faleceu? Tirei zero na prova? O amor da minha vida terminou comigo? ‘E tá tudo bem’, eu estou autorizado a sofrer. Tá tudo bem, não preciso ser forte o tempo todo. Tá tudo bem…, mas será que está? Não tem nada bem…, mas tá tudo bem…

Em conversas triviais as pessoas em geral sempre me perguntam se eu já li esse ou aquele livro… normalmente livros de autoajuda. Tento seguir as conversas educadamente, mas sempre me incomoda isso, as pessoas sempre buscando por respostas prontas, receitas, e, nesse caminho, ‘é sobre isso, e tá tudo bem’ perde seu sentido real para se tornar uma mera frase de efeito, um jargão, um mantra a ser repetido na esperança de receber forças do além, como uma oração de frases repetidas que se fazem nos templos religiosos frente às divindades que se escolhem acreditar.

Na perda do sentido original e do senso crítico a expressão se transforma em fala vazia. No fim das contas não é sobre nada, e não está nada bem. Muitos repetem frases das filosofias como mantras sem refletirem sobre os desdobramentos possíveis destas frases. Trago aqui o mantra de Sócrates: “Só sei que nada sei”.  Só sei que nada sei é repetido em diversas situações nas quais as pessoas querem endossar o próprio direito à ignorância, em que querem se reservar ao direito do não-saber e de assim permanecer, na recusa a aprender ou a reconhecer novos pontos de vista.

Mal sabem… Mal sabem o quão foda e inteligente Sócrates era. Questionador, era conhecido por ganhar todas as batalhas intelectuais de que participava. Lembro que uma das primeiras vezes que me sentei aos pés de uma intelectual para ser instruído ela usava o adjetivo ‘socrático’ para falar de pessoas desafiadoras, questionadoras. ‘Só sei que nada sei’ não é apenas tirar o corpo fora, mas reconhecer os limites do próprio não-saber e a necessidade de aprender mais. Mas mais ainda, ‘só sei’ também é um saber, saber que nada se sabe.

Um dos maiores desconfortos que tenho no meio da psicanálise é uma interpretação que se faz sobre a ideia de ‘não-saber’. Jacques Lacan, psicanalista francês, dizia que o paciente procura o analista por um ‘suposto saber’, que ele acha que o analista sabe sobre algo do seu sofrimento, como se espera, por exemplo, de um médico, que saiba o que está errado e qual medicamento é necessário. Este é o pensamento guiado por receitas prontas ao qual me referi. Em uma resposta totalmente rebelde, alguns psicanalistas propagam a ideia de que devemos renunciar a toda ideia de saber e de controle. Que devemos trabalhar com os pacientes a ideia de que viver é caminhar no escuro e nunca saber de nada. Algo que, no senso comum, poderíamos traduzir como ‘é sobre isso, e tá tudo bem’.

Não é sobre isso e não está nada bem. Tudo isso, tudo, o insight e seu ‘é sobre isso’, o direito a sofrer ‘e tá tudo bem’, o reconhecimento dos limites do saber ‘só sei que nada sei’, tudo é muito valioso, mas nada destas boas ideias tem real valor sem senso crítico, sem capacidade de pensar. Antes de nos apegarmos a frases feitas devemos aprender a pensar para podermos usá-las como ferramentas úteis, e não como mantras religiosos. A vida é sim um mar de angústia, no qual, se prestarmos bem atenção, pouco se sabe. Mas cada pessoa no seu universo próprio suporta um certo limite de angústia. A fantasia de saber é necessária para aplacar a angústia de viver, não é à toa que ‘só SEI que nada sei’.

Estou cansado da ditadura polarizada que faz com que as pessoas adotem frases e crenças sem pensarem por si próprias. A ditadura que antigamente determinava que você sempre tinha que ser bom, bem-sucedido, trabalhar 25 horas por dia, trabalhe enquanto eles dormem, agora se transformou na ditadura do conformismo. Nem lá nem cá. Há momentos em que ‘é sobre isso’, e há momentos em que não é, em que devemos continuar pensando, trabalhando; há momentos em que ‘tá tudo bem’, e há momentos que não está, que temos que nos movimentar, lutar, estar descontentes.

Há um outro famoso psicanalista, Winnicott, um inglês, que falava sobre “suficiência”, uma medida na qual fazemos, nem mais, nem menos, mas o necessário, o suficiente. Se aproxima talvez do que os ‘good-vibers’ chamam de equilíbrio. Manter o equilíbrio… Me apavora a ideia que as pessoas têm de que manter o equilíbrio é manter-se numa força nula, como uma balança que tem seus dois pratos alinhados no centro em um dia tranquilo de céu azul e pássaros cantando.

Se a balança somos nós, a vida nem sempre é um dia tranquilo de céu azul. Te convido a pensar a vida como uma variação de dias ensolarados e tempestades. As vezes é possível sim, e até prazeroso, manter-se no centro, refugiar-se em saberes prontos. Agora imagine nós, enquanto balanças, em um dia turbulento, um terremoto, no qual para mantermos o centro da balança teremos que colocar os pesos sobre os pratos de acordo com a variação dos momentos (e convenhamos, na vida esses momentos mudam o tempo todo). Te convido a pensar ‘equilíbrio’ não como esse centro, essa ausência de energia, mas como saber usar a energia de acordo com o que a vida apresenta e com o que nosso desejo clama.

Aí sim estaremos prontos para usar saberes, até mesmo frases prontas, de Sócrates às gerações Z e Alpha, da melhor forma. É sobre isso, e está tudo bem.

Marcos Moura

Psicólogo, Psicanalista, mestre em Psicossomática e escritor.

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