Vem Conversar

Não foi bom

Querida,

Você me traiu, Gabriela. Não foi uma traiçãozinha qualquer, dado que foi com que aquela mulher que eu temia que seria sua amante. Para me contar, precisou fazer sua cena: me chamou para sair, foi para nosso bar favorito, pediu nossa porção de batatas com costelas e duas cervejas. Mas já começou gentil na saída do carro: abriu a porta para mim, me tomou pelas mãos como que para evitar o baque com o solo que viria em seguida. Assim que chegaram comes e bebes, você me contou assim, a seco “eu te traí ontem, não era serviço que eu tava cobrindo, era outra” como se me contasse que bebeu 2l de água como manda o figurino. Nenhuma afetação, nenhuma culpa, só um pedido muito chocho de desculpas, quase sem esforço nenhum, como se nem obrigação fosse, apenas uma indicação do quão pouco você se importa.

Fui embora sem falar nada. Voltei para nossa casa, aquela que finalmente comecei a chamar de minha depois 35 anos sem me sentir em um lar, e era como se estivesse retornando a uma gruta vazia. Nada ali parecia meu, minha vida parecia ter sido tirada de mim, a somatização histérica que me acompanha me fazendo ter enjoos e dores pelo corpo segundos depois de ter pisado dentro da casa. A maneira pela qual você me contou era o que mais me doía naquele momento: será que eu não merecia mais?

Tentei dormir de imediato, higiene básica sendo meu esforço máximo aquela noite. Acordei várias vezes com pesadelos horríveis, um ódio inimaginável começava a correr pelas minhas veias e, como dormir parecia impossível, decidi segui-lo para descobrir sua origem. Retomei todas as conversas que tivemos sobre aquela moça loira pela qual você, sempre me chamando de Aninha, jurou nada sentir. E não foi uma conversa apenas, foram centenas de vezes pois percebia a centelha que brilhava nos seus olhos ao falar dela, uma centelha muito parecida com aquela que diziam ver em você ao falar de mim. Talvez seja por isso que, intuitivamente, sabia que ao te deixar no quartel aquele dia algo estava estranho. Tive mesmo o impulso de dizer um “te amo” apressado, de te segurar e não deixar que fosse, qualquer coisa assim, mas não o fiz. Erro meu? Possível, mas não fui eu quem traí.

É certo que, na última semana, as coisas não andavam bem. Auto estima no joelho, os nossos corpos em tamanhos e formas que já não nos agradavam mais, crises de ansiedades constantes, minha preocupação com seu trabalho…mas não, nada disso era a origem do ódio, senti. Senti que ele vinha da conversa e de você ter me dito que “não foi bom” trair mais do que de qualquer outra coisa.

Relembrei todas as vezes nas quais você me jogava uma frustração nos peitos, como se fosse obrigação minha; relembrei sua proposta de relação aberta, brilho nos olhos e ar de desbravadora e todas as vezes que me tolheu quando tentei ter alguém que fosse diferente do que você queria; lembrei-me, por fim, da necessidade constante que você tinha de me ouvir falar sobre tudo, te contar tudo, uma espécie de transparência infinita que nunca estava clara o suficiente; relembrei, por fim, da sua odiosa mania de me chamar no diminutivo quando queria chamar minha atenção ou abaixar minha guarda e entendi de onde vinha meu ódio. Pensei bem e vi que nem quando você está tomando a atitude mais egoísta possível, decidindo por duas pessoas o destino delas, você se sente satisfeita. Se nem assim a satisfação vem, não será comigo ou com qualquer outra pessoa que satisfeita será. Meu ódio era de, ao te ouvir, me dar conta de que um dia achei que seria comigo que seu buraco seria preenchido. Mas não. Você é só isso na vida das pessoas: um enorme buraco. Agora que me dei conta disso, só quero que você se foda.

Ass: Ana.

P.S: Pegue suas coisas nas malas que já fiz e as leve amanhã pra onde bem entender e não me acorde quando for, já te disse tchau antes de tomar coragem para escrever essa carta.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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