O intolerável: pensamentos sobre a emoção além dos limites

Inicio esta escrita enquanto estou em um sofá, ao lado de um leito. Minha mãe, a quem sou muito apegado, está deitada, dormindo. Ela passou por uma nefrectomia, uma cirurgia para extrair um dos rins ontem, já está fora de perigo. Ocorre que ela estava bem ansiosa com isto, e, intimamente, eu também. Mas como somos só nós dois, tentei ao máximo não demonstrar isso a ela, para dar apoio.

Nisto de contermos nossas emoções, a psicanálise vai dizer que o conteúdo que tentamos aprisionar no inconsciente ‘escapa’, e uma destas possíveis vias de escape é o sonho.

Semana passada sonhei. Sonhei que estava em uma moto com minha mãe na garupa, descendo uma ladeira. Na descida, uma rua que tem aqui perto de casa com um semáforo no final. Enquanto descia, fiquei sem freios, e a moto passou o sinal vermelho.

Dentro do sonho, passei por uma sensação a qual acredito ser a sensação de morte. Luzes e cores piscaram, e tudo se apagou aos poucos. Quem já desmaiou de dor alguma vez na vida sabe o que estou falando. Quem não sabe, dê asas à imaginação.

Ocorre que eu não morri de fato. Acordei, e estava agarrado ao alto de uma torre. Olhei à volta e reconheci: era o campus de uma conhecida universidade aqui da minha região. Desci no estilo bombeiro (escorregando), e comecei a perguntar às pessoas, tentar entender o que tinha acontecido. Vale salientar que a universidade, na vida real, está em uma cidade vizinha, mas o que são alguns quilômetros para o inconsciente?

Em minha coleta de informações, descobri que havia passado duas semanas da data do acidente de moto. Comecei a procurar desesperadamente por minha mãe, mas não a achei…

Acordei, e acordei com a cabeça fervilhando de ideias. Anteriormente já escrevi um livro baseado em um sonho[1], então comecei a anotar tudo. Confesso que provavelmente a ideia de escrever algo a partir deste sonho seja a forma que encontrei de, a primeiro momento, não enfrentar seu conteúdo: minha mãe é a única família próxima que tenho, somos muito apegados. Ela estava assustada, com medo da anestesia, e eu não estou pronto para perde-la. Somado a isto, estou em uma corrida para o desenvolvimento de uma careira universitária, o que me afasta cada vez mais de casa. A universidade em questão é um lugar no qual eu gostaria muito de trabalhar, e, como diria Freud, seria meu falo, uma vez que eu estava ‘agarrado’ ao alto de uma torre, e precisei descer para procurar minha mãe.

No sonho não tive a confirmação do que teria acontecido com ela, mas a sensação era de que ela tinha morrido. Não, de que eu a tinha matado. Em Interpretação dos sonhos, livro do ano de 1900, Freud dirá que os sonhos são realizações do desejo. Eu desejava intimamente matar minha mãe? Entretanto a arte de interpretar sonhos não é tão simples.

Havia a sensação de morte, mas não a confirmação. Havia a renúncia ao objeto fálico para buscá-la. E havia um medo que eu já trazia do dia. A verdade é que este medo que me assolava e que eu tentava negar era insuportável. Intolerável. Mas ainda assim ele estava lá. O sonho foi uma forma de representá-lo, de dizer “eu estou com medo”. Não me surpreende que eu só consegui, de fato, começar a escrever, quando a incerteza acabou e sei que ela está fora de perigo.

Por intolerável, entenda-se qualquer experiência que esteja além dos limites que podemos aguentar. Pode ser uma dor física, como se falou do desmaio por dor, ou mesmo de dores psíquicas, dores da alma, como o medo e a angústia e a dissociação. Podemos adicionar a este grupo também as perdas, as indignações, a contrariedade de nossas certezas de visão de mundo, e até mesmo algumas alegrias. Já teve a sensação de estar tão feliz que ficou sem reação?

Uma vez um amor me disse: “eu não consigo te amar menos. Bem que eu gostaria”. Até mesmo a experiência milenar descrita em tantos olhares pela literatura e pela filosofia, o amor romântico, pode se tornar intolerável. Em A língua da ternura e a língua da paixão, escrevi um subtítulo que se chamava “Paixão e devastação”, o qual dizia que quando estamos em estado de apaixonamento entramos em um ciclo sem fim de causar o desejo e saciá-lo. Causar o desejo é deixar faltar algo. No caso da frase que trouxe acima, pensando sobre a relação, os momentos prazerosos de amor eram muito intensos, muito mesmo. E para serem tão intensos as faltas têm que ser igualmente intensas. Quão intolerável pode ser o mais forte dos amores?

Sim, Intolerável não é apenas a sensação ruim. O ponto é que qualquer ser humano tem limites. Esses limites variam de uma pessoa para outra. Alguns são mais tolerantes à dor física por exemplo. Outros lidam melhor com perdas, e por aí em diante. A dificuldade com esta lógica, que pode parecer simples a primeiro momento, é que o simples fato de que não somos capazes de tolerar algo que vai além destes limites não faz com que o intolerável deixe de existir.

E por que Intolerável, e não insustentável? Ou insuportável? São sinônimos afinal, poderia simplesmente dizer que na minha inspiração lírica foi o que eu quis e ponto. Mas caminhar no litoral entre a prosa e a psicanálise traz o ímpeto dos porquês.

No dicionário Michaelis da língua portuguesa, a descrição de suportar é “Sustentar o peso de; ter sobre si ou contra si (algo) e ser capaz de resistir a seu peso ou à sua força; aguentar, resistir”, conquanto tolerar é “Consentir alguma coisa em relação à qual se faz restrições ou com a qual não se concorda”. Ambos os verbos transitivos diretos falam de uma aceitação de algo, mas enquanto suportar é ocupar a posição de suporte, que sustenta determinada carga, tolerar trata de consentimento. Suportar é uma posição passiva; tolerar é um ato.

Intolerável é a experiência que para além do limite de suporte, extrapola os limites de nossos atos. Isto porque, de acordo com a psicanálise, nossas experiências necessitam ser representadas. Isto quer dizer que encontramos uma sequência de elementos – pensamentos, palavras, imagens, gestos – que possam traduzir a sensação vivida. A representação é o movimento de retaguarda da tolerância. Toleramos aquilo a que se pode representar, seja da forma mais precária, ou em uma simbolização altamente refinada. Seja, a exemplo da sensação de revolta, por um dedo do meio ou por uma formal nota de repúdio. Está para além daquilo que se suporta passivamente.

Mas aquilo a que não se tolera está fora do campo da representação? Decerto que não. Por isto se fala em representação como movimento de retaguarda da tolerância, e não como se fossem a mesma coisa. Como dito, existem diversos modos de representação da experiência. Certos modos são tidos como saudáveis, e outros como patológicos. Não sei se concordo com essa divisão. A noção de patologia na sociedade atual é mais ligada à capacidade produtiva do sujeito do que ao sofrimento.

Há recursos de representação, como o sonho exposto e os sintomas de adoecimento, os quais são o anúncio daquilo que não foi tolerado. A psicanálise ajuda a entender isto quando se pensa no movimento de reprimir algo no inconsciente, o que se chama ‘recalque’, e que este algo retorna como sonhos, sintomas, negações, e até mesmo como humor. É o ‘retorno do recalcado’.

Entretanto, não posso dizer que o Intolerável é simplesmente o que causa sofrimento. Há sofrimentos que são perfeitamente toleráveis. Então, no fim das contas, é uma noção abstrata. Se trata muito mais de intensidades do que de um movimento determinado. Neste sentido, o caminho litoral prosa/psicanálise possibilita não apenas que possamos visualizar os toleráveis e intoleráveis, mas que, durante a leitura, possamos sentir sensações, experienciar, porque, como disse Freud, “Só a experiência própria é capaz de tornar sábio o ser humano”.


[1] A língua da ternura e a língua da paixão, Razzah Publishers.

Marcos Moura

Psicólogo, Psicanalista, mestre em Psicossomática e escritor.

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