O pianista e a infelicidade

Tristeza faz dormir, todos os estudos em suas estatísticas dizem. Mas como tudo em seu excesso, o fogo que em frio arrepia, o gelo que queima e lacera a pele, aquilo o mantinha acordado.

5h35, sabia, era o mesmo horário de todos os dias, como um despertar obrigatório natural. Tateou qualquer coisa que lhe desse sentido. Os óculos. Uma partitura inacabada. Uma história a ser construída.

Não era tristeza exatamente, era pior. Era infelicidade. Não era pois um sentimento por si, uma presença. Mas a ausência total de qualquer gota de motivo. Então ela.

Ela era aquele ponto de luz em tudo o que tocava. Era o amanhecer quente, o café forte, perceber que conseguiu pegar o vagão mais vazio, ver os compromissos cumpridos, realizar-descansar-estar em paz. Toda sua fonte de magia.

E ela sabia, era notório. Mas antes de tão abertamente ele lhe falar, ela podia fingir que eram só ideias de anulação tentando atrapalhar os dois. Podia fingir o que quisesse. Até que ele lhe contou. Falou-lhe da profunda infelicidade existencial que sentia. Falou do quanto os sentimentos escuros sequer podiam ser chamados de patológicos, pois patologia é o que se acomete, mas o que lhe dá forma, e o faz o que é, é essência. Aquilo era ele, mas ela.

E ela sentiu então o mais ambíguo de todos os sentimentos. Deleitou-se naquilo. Sentiu plenitude, sentiu felicidade, sentiu prazer. Queria com ele ser um só, aquele mundo perfeito exclusivo e fechado dos dois.

Mas sentiu todo o desespero da cisão. Era sua simbiose perfeita, por isso bom, por isso pior. Não podia. Ele também sabia. Então era uma felicidade triste que compartilhavam.

Nunca pôde negar o esforço-engajamento empreendido por ele para darem certo, mas até isso era patologia em seu estado mais puro, sabia.

Não eram os arredores, ética de contexto, a maldosa invasão alheia. Eram eles dois, no mais fundo de si. O deparar-se com os próprios problemas enraizados-não terapeutizados.

Ela precisava ir embora. Deixá-lo. Deixá-los.

Eu amo você, sussurrou ela. Berrou, em seguida, até sentir que não havia mais voz, mais fôlego, nem nada. Estava de novo vazia e nele tinha cavado mais aquele vazio compartilhado. Então o abraçou e o amou, de fato, como nunca fizera nem com ela mesma. Mas fez isso só quando sabia que ele já não mais poderia ouvi-la.

Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.