Vem Conversar

Palavramor II: funeral

Sua reclamação principal, ao menos em relação à monotonia de seu descurioso namorado, era a de que ele não reagia. Falta de curiosidade, falta de reação: figuras de um embotamento das emoções, como se todas as suas emoções fossem um choro sufocado que nem sequer tem energia para forçar sua saída. Era, portanto, alguém que não reagia, e o aparente estoicismo não é característica para ela, mas defeito. O que não se tornava evidente para ela era que era sedutora. Pode parecer estranho a alguns olhos e ouvidos, mas a sedução era dela parte como o era um braço ou uma perna. Afinal, seu incômodo era o estoicismo do outro e um tal incômodo só surge de uma quebra de algo, seja expectativa ou imagem pessoal.

Vai daí que com o outro, que reagia e nela provocava reações até intensas demais, sentia seu sangue vivo. Era como se fizesse transfusão de sangue quente da possível relação nascente para aquela relação morta, tentativa e ritual tão infinito de ressuscitação. Era uma transfusão infinita, afinal, tudo que é novo no coração jorra com uma generosidade inversamente proporcional ao quanto o cadáver de uma relação gosta de prolongar sua caminhada infinita. Era isso, pensava, que era sua relação: um funeral. E por mais que todos os protocolos de animação fossem por ela ativados, por mais que se iludisse com retornos e narrativas sobre quando começou, nada poderia ressuscitá-la. Foi numa dessas que decidiu dar um passo novo.

Havia tempo ouvia sobre a necessidade de casais de se provocarem. Decidiu provocar o seu casal e enviá-lo uma foto discreta, mais artístico do que nude, especialmente porque a pele não se despia por completo: aludia ao prazer conquistável, não esfregava a impossibilidade concreta do momento. Bastava, para conquistar o tal prazer, chegar em casa, caminho que ele já fazia quando em seu celular a foto chegou.

Era sedutora, como dissemos, e sabia bem o quando insinuar, permitir que o outro complete a linha e convocar sem dizer para onde eram formas muito mais interessantes de conseguir uma reação. E conseguiu a reação de seu descurioso, como queria. Tudo parecia em seu lugar, por alguns minutos. Mas alguma agitação tomava conta dela e ela sabia bem de onde ela vinha. Não era apenas para ele que a foto havia sido tirada: tinha, ainda, o outro, e a hipótese de ele pedir a tal foto e ela se sentir por ele desejada pairava e serviria de combustível para imaginar penetrações e posições as mais diversas. De quatro, submissa, se sentindo mulher de um, se fantasiaria mulher de outro. Era a transfusão maior, uma transformação daquele membro que a penetrava no membro de outro, do orgasmo de um a preenchendo (infelizmente ele era muito controlado para isso, pensou) em orgasmo de outro. Era se imaginar um território sendo conquistado por um inimigo. Mas pra isso o outro precisava saber da foto. E foi disso que ela se assegurou.

A música descreve como ela se sente, mas em quem o feitiço foi lançado?

Parte I
Parte III

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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