(A música toca ao fundo enquanto a personagem pensa o que pensa)
Mas não contava com o fato de que a frustração fosse vale de um pico chamado desejo. Transou durante todo o fim de semana com o seu, mas não conseguia jamais deixar de pensar no outro enquanto transava. Fantasiar, vá lá, todos fazemos, mas o que ela sentia era surreal. Por vezes, jurava mesmo tê-lo visto ali, em cima dela, beijando-a. Piscava: ele se ia e virava seu morto e descurioso namorado, a palidez existencial não deixando quaisquer dúvidas de quem estava ali em cima dela, trepando com ela. “Trepando, não: transando e olhe lá” ela pensava, imaginando o que poderia viver com o outro de novidades.
E não é que pensasse que teria outras coisas, que faria coisas distintas, estripulias e coisas assim. É só que sabia que a gana pela vida que o outro exibia a cada vez que conversavam a movia a fazer algumas coisas. Provocava-o também. Compartilhava os dias com ele esporadicamente, mas de um jeito que ele soubesse que ela pensou nele quando o programa a ele remetia. Não o direto “isso me lembrou você”. Isso era ainda direto demais para ela. Mas o mais sutil “vou ver filme x sobre assunto y”, o “assunto y” sendo algo que ela talvez não conhecesse outro homem que se interessasse – especialmente porque eram assuntos femininos.
Talvez fosse isso. Ele reunia características muito distintas daqueles homens que conhecia. Intelectuais, machos alfas, dançarinos, artistas: todos pareciam, em algum grau, masculinos demais. E isso era um problema. Ele, não. Ele era feminino, mas com um desejo de homem. “Aí é foda…” ela pensou “de resistir.”. Era também uma certa segurança que ele tinha de não precisar se importar com o que fazia, “as consequências serem imprevisíveis é uma das graças da ação” ele dizia e ela. Assim ela, que sempre fora forçada a ser calculadora e controlada, se sentia compelida a experimentar esse mundo sem rédeas. Na verdade, a querer mergulhar nele sem certeza de retorno, a viver sem corrimão, a como que cair para cima. Porque já era o que ela queria e, com alguém sentiria que teria sua mão puxada dos apoios que inevitavelmente erguera para si e poderia, enfim, apenas percorrer o caminho da alta velocidade que sempre quis para si. Ser puxada não era, de modo nenhum, uma nova bengala, numa nova âncora, uma nova submissão; era, antes de tudo, a possibilidade de se jogar ao movimento mantendo os pés no chão, mas sem estar com eles nele colado.
Pegava-se pensando nisso quando reparou que, mais do que das outras vezes, a música que ouvia como que conversava com ela. Retornou a si e ouviu mais atentamente o que lhe entregava seu shuffle que conseguira, dessa vez, arrebatar sua atenção. Ouviu repetidas vezes: “gota que é mar, transborda o peito”, repetia cantarolando a música, e via como era exatamente assim que se sentia frente a ele. Tão pequeno era ele, tudo relativo à vida por ela vivida sendo considerada. Não era, a bem da verdade, nenhuma relação fundamental em sua vida, se reduzida ela fosse aos termos mais simples. Nem sequer era um dos amigos mais íntimos. Mas ele era para ela a sutileza do excesso. O excesso que fazia com que as coisas se abrissem como o que eram: descaminhos dentro da segurança forjada pela violência de uma praticidade e de um cotidiano que ela, a bem da verdade, estava cansada de viver. Cansara-se. Decidiu que aquela vida já tinha dado, tinha esgotado suas energias dessa ausência de possibilidades. Viver daquele jeito, até ali, já estava bom. Já tinha se cansado de criar barragens para conter suas águas. Já chegava. Mas onde?