Altura média, olhos vivos, óculos redondos, sotaque marcado. Da sua boca não saía mãe nem mãezinha: mainha. Sonhava com o dia em que somente sonhar seria suficiente para realizar os sonhos, não porque teria poderes mágicos, mas porque finalmente seria ouvida. Porque sonhar, ah, isso ela fazia muito. Devaneios diurnos de conhecer o mundo, de conhecer os prazeres que se privara de viver por conta de um investimento na estabilidade. Financeira? Emocional. Vivia? Não sabia, mas certamente respirava um ar que já se tornava pesado. Sentia-se perdendo qualquer coisa, como se a juventude fosse um jogo de whack-a-mole que ela tivesse batido com força demais e não fosse voltar. Estragara o brinquedo, pensava.
Por trás da calmaria escondia um sem número de turbilhões, como a noite estrelada de Vahn Gogh escondia sua loucura: mostrava, em algum grau, mas a beleza que todos queriam ver suplantava qualquer tentativa de percepção. Sua calmaria era, então, apenas uma fina camada que não tanto escondia, mas revelava apenas para quem se demorasse para olhar. A demora de fita-la era rara não apesar, mas justo por ser bonita. Rapidamente os homens viam apenas o próprio desejo e ela se tornava uma superfície que refletia apenas o próprio homem. Sem fazer absolutamente nada para isso, aliás. Não viam sua malícia, não viam seus desejos fortes e inauditos. Verdade seja dita: não viam, também, porque eram pequenos deslocamentos sutis que os mostravam: um olhar demorado aqui, um sorriso discreto acolá, umas piadas que fazia…tudo apontava muito sutilmente para um outro lado, como se o corpo precisasse confessar algo e se traísse no processo.
Conhecia um sem número de pessoas, se dava com todas elas. Não havia exatamente alguém que despertasse sua curiosidade. Ao menos não que quisesse confessar. Se pegava constantemente retornando a uma conversa específica e repetia quase que um ritual de mensagens… oi tudo bem interrogação. Estou invocando a morte outra vez para dizer que minhas saudades de você são um pouco ela pra mim… e seguia conversando por horas com esse homem que, para ela, era um mistério. Ali era ouvida, vista e tocada. Mas tudo o que tinham: palavras. O mistério estava nesse toque que vinha sabe-se lá de onde, mas vinha. Seu corpo era, de fato, tomado pelas palavras dele e sentia, melhor, sabia, que o dele pelas dela. Ele era capaz de entrar nela mais fundo que seu namorado, sem jamais tê-la penetrado “de fato” o que quer que isso significasse para ela agora. Alternava entre considerar tudo isso um absurdo e desejar mais e mais disso que, no fundo, eram só palavras. Como se fosse pouco, pensava logo.
O sexo com o namorado, tedioso e moroso, após uma dessas conversas ganhava a energia que o jogo entre tesão por outro e consequente culpa traz. Isso a motivava a transar e ter prazer com um homem cujo sexo era testemunha de seu próprio modo de ser: devagar. Ele não tinha culpa, havia nascido lento e pouco intenso. Não era apaixonado. Seus olhos não brilhavam com tudo o que lhe era estranho. O mundo era apenas um objeto a ser estudado, descoberto, mas sua posição não era a de quem é curioso. Era quase como se houvesse um caminho de A a B e esse era o caminho que devia percorrer. E não há inimigo maior do desejo do que o dever, como bem se sabe. Sua namorada era, assim, mais algo que devia fazer e, por isso, apesar de deseja-la, simplesmente parecia não o fazer. Será que só parecia? Não se sabia. E ela já estava próxima de se cansar de se perguntar.
Ela sabia que desejo era instabilidade, palavra que o vocabulário de seu namorado não comportava. Demonstrá-lo, para ela, era perder a compostura. Não eram para ele: o susto, o acaso, o inesperado, a pegada-do-nada-que-coloca-apoiada-na-mesa-e-começa-o-sexo, a antecipação que o reencontro saudoso pede. Nada disso lhe era conhecido ou possível. Era, afinal, um descurioso.
Ter “apenas” palavras com o outro não era tão pouco assim. Com o seu, tinha: gestos, corpo, toque, presença. Sentia: solidão. Com o outro tinha palavras e sentia que o fluxo infinito delas descrevia melhor do que quaisquer dois pontos o que sentia. Não havia pausa, salvo aquela que era a do boa noite. O tempo não era mais um espaço de horas regido pela cronologia, a lógica não era a de um Deus que devora seus filhos, mas a da duração de um nós que não se desfazia até que não houvesse mais jeito. Os substantivos eram coisas e o verbo era a ação. Suas palavras oscilavam entre o carinho airado e o tesão desvairado. Um abraço da despedida era a certeza de sentir seu corpo e sentir seu cheiro, até mesmo seu calor. Dormia mais feliz nesses dias. Sentia-se viva.
(a música que acompanha o texto tenta passar o que a personagem quer sentir ou sente no momento que o texto revela)