Depois dessa noite, imaginou que cortar fosse a melhor solução. Afinal, estava ali, pensando no que fazer e em como fazer, estava confusa e bastante mexida e, por isso, já se via decidida. A expectativa era sempre o que a impedira de fazer isso, uma expectativa de algo diferente acontecer e o arrependimento ou, pior, o desencantamento de nada ter mudado a afundar. Era sempre assim quando tentava mudanças: parecia que rodava em torno do mesmo lugar, como se nada mudasse de fato. Era como mudar as cores de uma mesma prisão: por algumas horas, dias, meses, as coisas eram diferentes; momentos depois, tudo voltava a crescer e ser como antes. Sim, estava decidida: iria cortar logo de uma vez.
Antes, no entanto, foi pedir ao outro que opinasse sobre quais cortes ele achava que nela ficariam bons. Ela não queria uma escolha direta, no entanto, uma espécie de seleção de qual mulher ele quereria para si, fosse esse o caso. Queria era falar sobre seus gostos, suas preferências, existir aos olhos de outro de uma maneira muito diferente, maneira essa que só se aflorava quando o flanar de sua alma ganhava o espaço que só o olhar interessado de uma outra pessoa sabe abrir. O outro servia bem a esse propósito, especialmente porque ouvia o que ela tinha a dizer, a perguntava sobre si, se mostrava curioso sobre quem era aquela pessoa com quem falava, ainda que já a tivesse visto, tocado, movido. Era como se eles estivessem se conhecendo agora, ela pensava.
A curiosidade sobre si era o que a motivava, curiosidade que a fazia perguntar coisas muito específicas para ele, como sua data de aniversário e hora para saber seu mapa astral. Pequenas deixas sobre seu interesse de checar a compatibilidade que mostravam o quanto as sementes daquilo já estavam muito mais próximas de uma árvore do que de um simples botãozinho. Pensava ela que de repente os astros, em suas órbitas celestes e infinitamente perfeitas poderiam ensinar a ela o caminho a seguir. Eles sempre percorrem seu caminho sem nunca se cansar ou desviar, devem servir de guias. De repente um Sol apontaria uma direção para ela ou uma Lua, mais generosa, refletiria na direção que ela esperava, como se refletisse não a luz do Astro maior, mas tivesse por reflexo seu desejo, numa espécie de cumplicidade feminina. Quem sabe.
Fazia isso ao mesmo tempo em que reforçava para si e para todos que o seu era e seria aquele quem a acompanharia para sempre. Todos sabem que quando a razão precisa fornecer motivos, é sinal de que eles já não motivam mais. Suplementos só aparecem lá mesmo onde uma deficiência se mostra como a marca central. Não são necessários numa relação na qual isso nem sequer é uma questão. Na verdade, agir fortemente assim, na direção de manter uma relação, servia apenas para acalmá-la enquanto fazia o que, de fato, queria fazer: tecer com vagar e delícia os fios de sua compatibilidade com o outro. E nisso, para ela, os astros eram peças fundamentais. Afinal, se os astros abençoassem, quem seria ela para ir contra?
Pelo Sol, nada feito. Ela, peixes: emotiva, chorona, coração à mostra, um rio que escorre a cada desimportante acontecimento que a chacoalha; ele, gêmeos: racional, dúbio, falante, um muro de razão, barragem diante da qual nenhum rio passa. “Mas algo está errado”, pensava ela, “porque a sensação que tenho com ele é de que poderia passar anos aqui”. Esquecia que a metáfora as vezes pode ser mais do que uma comparação, pode ser mesmo um casamento. Sem saber disso, buscou na concretude de fazer o mapa astral todo um refúgio. Comparou, comparou e finalmente viu o porquê do que sentia, razão que já queria ver. Para ela era como se os astros decidissem confirmar o que ela já sabia: sua sensação vinha de uma compatibilidade de um agir como o outro buscava que o outro agisse. Estava lá na Vênus de cada um deles, escritinho, bem explicado, a dela mimetizando o signo solar dele, o dele sendo o animal mais imponente da natureza. Com as respostas que queria em mãos, alegrou-se e pôs uma música:
Após ouvir sua música e dançar sozinha com sua felicidade, cantarolando enquanto lavava sua louça do café, decidiu voltar à ideia do corte. Não acreditava muito nessa mística do cabelo, mas o desejo de mudar fazia com que acreditasse em qualquer coisa que a modificasse. Tudo aquilo que era rotineiro, do trabalho, das amizades, da família já estava tinindo; ainda sentia esse incômodo de algo faltar. Cortar o cabelo, em relação a isso, era uma aposta como outras.
Já sabia o que aconteceria nos momentos a seguir: pediria para cortar mais curto, a cabeleireira iria ter pena, como se a força dela, qual uma versão feminina de Sansão, dependesse dos cabelos. Teria, então, de insistir e, ainda assim, não teria seu desejo atendido. Mas dessa vez, como se o destino quisesse sorrir para ela com os sopros da mudança que ela vinha pedindo, a cabeleireira era outra. Olhou para o cabelo dela, segurou bem até a altura que ela falou e perguntou apenas uma vez: “tem certeza?” ao que ela responde “não, mas quero mesmo assim”. E zupt! Numa tesourada, seu cabelo estava na altura de sua nuca. Terminados os ajustes do corte, se olhou no espelho e, ao perceber suas maçãs do rosto mais visíveis e seu rosto bastante diferente da menina de antes, percebeu: virara mulher.
Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV