Palavramor VI: agressividade

Acontece que, sendo agora mulher ou não, sentia um certo incômodo com o seu. Desde antes de cortar o cabelo, sentia que algo havia se alterado no espírito da relação, uma distância havia se interposto, uma barreira se erguido, tudo isso de maneira quase inamovível, mas presente de uma maneira sufocante. Inicialmente pensou que era porque estava se apaixonando pelo outro e, por isso, estava começando a erguer barreiras no caminho até o seu; no entanto, quando conseguiu colocar sua culpa de lado, logo se deu conta de seu erro e notou que o seu era quem parecia longínquo. O beijo, antes uma troca entre duas pessoas que se amam e, se não se amam, ao menos tentam fingir, agora parecia apenas sua realidade biológica: um encostar de lábios. O abraço, antes casa do aconchego e da alegria e refúgio para tempos de solidão, era apenas o roçar de leve de seus seios no torso murcho de seu parceiro. Sua voz nos ouvidos dele, antes um encantamento, agora: ruído ao qual ele pouco prestava atenção. Uma distância definitivamente havia se imposto no toque dos corpos e da alma – mesmo no sexo, que é a junção dos dois, ela pensava – e ela não sabia bem de onde ela vinha nem quando começou, mas literalmente sentia seus efeitos em sua pele.

Ao cortar o cabelo e mostra-lo ao seu, notou que este recebeu o corte com algum entusiasmo e, ao mesmo tempo, com uma certa nota de desapontamento que ele nunca foi bom em esconder, péssimo em destilar sutilezas que era. Não que ela não soubesse que seria assim, mas a realização da expectativa, o retorno à distância que sentia tão logo o peso da novidade se dissipou, o calor que fazia nesses dias, seu desejo de mudança, tudo isso parecia como que em sinfonia para estorvá-la, como se a natureza fizesse uma aliança secreta com sua relação para destruir o pouco de alegria que ela havia conseguido conquistar com seu corte de cabelo. Achou boa ideia, então, atuar naquilo que podia e decidiu perguntar a ele o que estava acontecendo.

Ao fazê-lo, por sorte ou destino, viu-o olhando para o celular e rindo. Notara, pelo tipo de sorriso, que não era um daqueles que se dá quando um vídeo ou uma mensagem amistosa aparece. Não. Era um sorriso que apontava para certa satisfação, um sorriso cúmplice que advém da adequação de alguém a expectativa carinhosa que dele fazemos, quase como um deleitar-se no outro ser quem desejamos. É quase a exata repetição do sorriso da criança que ganha de aniversário o presente que tanto desejava. “Esse sorriso”, pensou, “é inconfundível” e o barulho do cair da ficha, bem como a sensação de soco no estômago que se seguiu, logo impuseram a ela uma verdade que ela não podia ver, cega que estava por sua culpa: havia outra.

Bolou um plano nos microssegundos em que ali esteve. Decidiu seguir com sua ideia inicial e perguntar para ele o que estava acontecendo, como se de nada soubesse, como se nada tivesse visto. Dirigiu-se a ele em seu tom habitual e ele, absorto que estava, nem sequer notou as notas sutis de raiva que já marcavam sua voz.

– O que tá acontecendo com a gente? – perguntou e, ao falar, temeu ter se transformado nos personagens antigos pelos quais se apaixonara, aqueles mesmos que, por quererem saber demais, acabavam se desgostando com seu saber.

– Nada. Do que é que você tá falando? – respondeu de maneira evasiva, os olhos pousando nela e rapidamente levantando voo em direção ao celular.

– Não se faça de morto, há dias nós estamos estranhos. O que tá acontecendo?

Ele, que por fraqueza pouco sabia lidar com a culpa que sentia, aguardara por esse momento ansiosamente. Não tanto o momento de falar a verdade – que ele temia -, mas pela propulsão dada por ela para que isso acontecesse. Ainda que gostasse das coisas às claras, ele só era capaz de torna-las assim quando o outro pedia a luz. Sentia-se, ao mesmo tempo, covarde e poderoso nesse momento, como um santo consciente de que iluminar é um ato divino demais, ato sagrado que, por sua natureza, o frágil homem nunca está à altura. Sua sensação de poder, por conta da sua covardia, só podia aparecer quando o outro tomava a iniciativa. Aí finalmente não seria responsável por iluminar nada, posto que o outro quem pediu. Se o outro ficasse cego no trajeto, ele que se houvesse com seu pedido.

– Olha, o que eu tenho para te dizer não é fácil…mas eu me apaixonei por outra… – Deu um tempo para conferir gravidade à situação – Agora que te contei, não pretendo seguir adiante com essa paixão, prefiro nosso amor a isso. Mas me sinto melhor de ter te contado e vou parar de falar com ela daqui pra frente.

O soco no estômago que ela sentira parecia ter se transmutado numa série de agulhadas por todo seu corpo, por fim se concentrando numa súbita palpitação, que ela sentiu como uma vertigem ou um golpe entre seus pulmões. O complemento que recusava à outra o direito à paixão que ambos sentiam, apesar de ter por função acalmá-la, deixou-a apenas um pouco enojada. Se antes o frágil pedestal no qual estava o seu precisava do reforço constante dos rituais racionais de reafirmação, agora não precisava mais: parecia ter se estatelado por completo. Viu-o como fraco, incapaz, mesquinho, pequeno demais até para seguir adiante um mínimo sentimento de desordenação e desejo. Seu capricho zeloso, bem como seu desejo pela ordem, aparecera para ela como uma reação medíocre de um homem que não consegue suportar o mínimo de caos. Sim, se nem capaz de dar seguimento a sua paixão ele era, não era motivo para que ele se sentisse a preferida, a amada, a Esposa, aquela com quem se pode construir uma história de vida. Ao contrário, era motivo para ela sentir um grande nojo de ser assim escolhida, como se ela não fosse mais do que um refúgio, uma bonitinha absolutamente inofensiva, quase como uma criança. De que adianta uma história da qual o desejo, o tesão, a desordem não participam?

Ela sabia de onde o nojo vinha: do seu recém descoberto transmudar em mulher e de todas as consequências que isso traz. Era como se a transformação houvesse também mudado o seu lugar na linguagem, como se ao escolher as palavras ela pudesse ser, de fato, mulher ou menina. E podia. Já tinha feito sua escolha: queria ser mulher. Decidiu reafirmar sua escolha:

– Ela fode melhor do que eu? – perguntou e, ao fazê-lo, se assustou com a agressividade dos termos, mas também de sua entonação, de sua postura que, como um animal selvagem, parecia disposta a ataca-lo independente da resposta que desse.

-O-O que? Não… não sei, não fomos até, mal nos beijamos… – ele respondeu com sua incapacidade de controlar seu medo diante da ferocidade da mulher que tinha à sua frente e não conseguia reconhecer.

Ela, no entanto, insistiu na pergunta:

– Ela fode melhor do que eu? – e concentrou todo seu ódio que, rápido percebeu, não era apenas por ele, mas sobretudo por si mesma. Não apenas ódio portanto, mas também toda uma gama de ressentimento. Se ressentia por ter se culpado pelo desejo por outro homem, por ter escolhido e justificado constantemente um homem assim embotado, por sentir que sua vida e sua abdicação agora pareciam injustificadas, já que todos os planejamentos feitos por longos anos ruiriam a partir dali…mas sentia raiva, sobretudo, pela audácia de um subtipo de homem como aquele julgar ser capaz de machucá-la. Justo ele, que só podia ser chamado de homem porque nascera com um pau, posto que, fora isso, nenhuma das características de um tinha.

Como ele não respondia, continuou e elevou a voz e redobrou a aposta na linguagem chula, da qual sentia saudades. Matava tais saudades em doses homeopáticas com o outro, alguém que ela intuía que seria capaz de criar um espaço no qual essa forma de falar seria não só desejada, mas combustível pro desejo. Aqui, no entanto, ela só estava tentando provocar nele alguma reação além da paralisação patética que via em sua frente:

– Ela chupa seu pau que você nunca me deixou chupar? Ela te dá o cu? É isso que você sente que falta na nossa relação e que você faz com ela, mas não consegue fazer comigo? É isso? Fala alguma coisa! Vai ficar me olhando com essa cara de nada pra sempre?

– Que linguajar é esse…? Você… Você… nunca falou assim… muito menos comigo… – disse isso para ela quase como um balbucio, o medo estampado em cada palavra sua, como se cada palavra fosse uma lágrima.

Isso não me comoveu. Ao contrário, me enfureceu ainda mais. A ofensa, que antes era mediana, agora tornou-se insuportável: não bastava ser um homem medíocre, embotado, descurioso: era também incapaz de enfrentar uma simples irritação de mulher, era incapaz de, num movimento brusco, me garrar e me levar pro chão, pra mesa, pra cama, pra casa do caralho que fosse e de trepar comigo. Precisava controlar minha linguagem, precisava me domar, me domesticar, pequenos rituais ridículos de um homem que apequena tudo que lhe foge do controle. Pensei comigo: pois ele que se foda com ela pra lá, que morra de remorso com sua paixão, tenho minha saída e, por sorte, ele apenas me dirigiu à porta.

Percebendo que ele continuava sem quaisquer reações, dirigi-me ao quarto, bati e tranquei a porta. Coloquei alto, como sempre amei, uma música que me lembrava do outro, indiferente às consequências que, agora, não dariam mais em nada.

Enquanto ouvia essa música no loop, pensava no outro, na minha condição recém descoberta de mulher e cantava a cada vez que aparecia o momento

Juro não ficar com outro pensando em você.

Palavramor V
Palavramor IV

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.