Vem Conversar

Palavramor VII: Lacuna

Pois é, aconteceu comigo o que com tantas outras havia acontecido: havia sido traída. O que mais me incomodava não era a ruptura do pacto, a existência da outra, a infidelidade, a culpa que eu senti à toa…nada disso. O que me incomodava era o quão fraco ele era, mesmo para trair. Essa outra, fosse quem fosse, havia me feito o favor de me permitir uma abertura de olhos e ao abri-los vi no espelho uma mulher que deseja um homem, não uma garota com seu garotinho. Ah, e como ele era um garotinho.

Decidi, como no corte do cabelo, fazer de minha história a narrativa de meu florescimento, a gente só narra nosso desabrochar afinal, todo resto é o processo atuando. E eu era o próprio desabrochar. Da raiva, nesse momento, mas um desabrochar ainda assim. Decidi que seria a narradora da minha história e a narraria com tanta violência, paixão e reviravoltas quanto eu achasse necessário, construiria um romance modernista duma vida que havia sido moldada, desde cedo, para ser apenas uma literatura vagabunda de banca de jornal. Alimentada por essa ideia, refletia ouvindo a música outro dizia ser a sua favorita dos últimos tempos, como que para me contaminar por ele pela sua música e, por estar impregnada do cheiro do seu ser, expulsar de minha presença e de minha casa o meu.

Enquanto ouvia, rezava para que o vento do qual ela falava fizesse seu trabalho, o meu já estava sendo feito.

Os dias seguintes transcorreram como uma ruptura na minha vida já cansada. Antes, falávamos de amenidades e eu sentia uma gigantesca vontade de falar com o outro a cada vez que ele falava. Corria para o quarto as vezes e lançava algumas mensagens para ter o que ler depois, rezava para que o meu viajasse para que pudesse trocar mensagens até tarde com o outro e sonhar com outras possibilidades, outros mundos, outras vidas. Agora não precisava mais dar satisfações ou assim sentia. Falava quando queria algo específico, fosse o sal ou irritá-lo. Era seca, cruel, amarga e um tanto sádica. Me neguei a transar com ele por um mês inteiro, meus brinquedos me entretiam, meu dedo fazia bem seu trabalho podia imaginá-lo como o do outro me atravessando e devassando os segredos que não conseguiria confessar sem sua deliciosa tortura. Era uma vidinha de merda entremeada por esses escapes alegres.

Às vezes pensava mesmo que estava enlouquecendo porque pensava saber quem era a outra. Podia bem ser aquela menina oferecida com carinha de japonesa que notei interessada demais e que se afastou quando o abracei; ou a branquela sedutora que deixava todos de boca aberta; talvez ainda a ex do outro, num maravilhoso jogo de ironia do destino, sendo ela uma mulher que todos se perguntavam como conseguir nem que fosse dez minutos da atenção faria sentido que o meu também se sentisse atraído. Essa última hipótese me deixava um pouco tonta: se ficasse eu com ele, teria o mesmo destino que ela, sem uma palavra sua, o olhar distante quando ela chegava, o bom dia por obrigação? Trocaria eu de lugar com ela e me tornaria a desejada por todos?

O que mais me impressionava era o quanto eu estava distraída, mas eu me sentia como que dopada. Me embaraçava com coisas que já cozinhava fazia tempo, quebrei dois ou três copos, por várias vezes salguei o café, fiz do meu celular um campeão de quedas… o mundo me escapava por entre os dedos, como se a fraqueza que era o meu ter a ousadia de me trair o tivesse reconfigurado e eu não soubesse entrar nele. Por vezes sentia mesmo que era tão parte dele que não tinha mais eu, espécie de perda das minhas bordas, como se me tornasse outra mulher, uma irmã que odiei ou uma sem sal qualquer que passou por mim. Tomava essas formas na minha cabeça e me parecia que o mundo, daí, fazia ainda menos sentido. Ele era o sem graça, ele era o traidor e eu era quem sofria: ironia das ironias.

Só saía desse estado mesmo enquanto trabalhava – e aí em nada pensava além do trabalho – ou quando estava falando com o outro – e aí meu foco era em atraí-lo para minhas prisões, em vê-lo se confessar louco, maníaco, desrespeitoso. Quebrar sua bondade, revelar seu apetite de homem – que fica mais ávido pelo que é de outro – quase que sentir sua mão me puxando pelo cabelo e me beijando porque já não aguenta mais.

Por vezes eu me pegava pensando, num desses devaneios, no porquê eu não me abria para outros homens além do outro. Tinha muitos amigos, mas todos os que tinham interesse – visível – eram disponíveis demais, solícitos demais, simplórios demais…óbvios demais. Sim, esse era o problema! Por serem óbvios demais não me deixavam imaginar histórias, desenrolar sonhos, tecer histórias impossíveis…eu não tinha lacunas que pudesse preencher, nada me faltaria exceto o ar que nessas relações sempre falta. E a falta de espaço me incomodava sobremaneira, era uma coisa completamente sem lacunas para eu preencher e isso fazia parecer que eu não caberia ali salvo se fosse pra cumprir um papel tosco daquela Deusa que ele adora como um fiel idiota. Não sou Deusa nenhuma, quero ser possuída com força e paixão, quero acordar no dia seguinte com preguiça e tesão sem saber decidir qual me move mais, quero ter presença de gente numa relação de gente. Quero ser o trilhar da linha que não se denomina nem de amor nem de tesão, a impossibilidade de decisão sendo a marca duma relação que se faz de fluidos viscosos e cuidado sentido.

Muitas vezes, quando estava distraída, era nisso que pensava repetidas vezes. Esse estado só passou em definitivo quando um dia eu acordei e o meu não estava mais lá. Havia conseguido minha lacuna.

Parte VI
Parte V

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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