Palavramor VIII: ausência

O abandono dele me pareceu como a realização forçada de um desejo. Não era que não quisesse que ele fosse embora, fantasiava com isso todos os dias anteriores. Mas entre o que eu imaginava e com a coisa foi, fria, sem que eu me desse conta, sem um adeus qualquer…aquilo tudo me pareceu como um despejo de ódio sobre mim, um desprezo completo a tudo o que a gente teve, uma falta de importância completa minha em sua vida. Sim, era como se fosse mais fácil me jogar fora, nos jogar fora, do que tentar qualquer coisa e que sinal de covardia isso era! Sabia que fazia pouco sentido me sentir assim, sentia nojo dele, sentia raiva de mim por me sentir confusa desse modo, mas não podia fazer nada, não tinha forças nem para me forçar a me sentir diferente. Nem meu ritual de luto, saídas, pegar uns idiotas, transar sem nenhum sentido…nem isso queria fazer.

Mandava mensagens para o seu celular e os risquinhos únicos indicavam ou um bloqueio ou uma mudança de aparelho. A covardia da fuga, a cada vez que me lembrava, me deixava ainda mais melancólica, como se o mundo inteiro tivesse sido sugado de sua vivacidade e abandonado suas possibilidades alegres. O futuro não me parecia uma espécie de vivacidade novidadeira, a alegria de uma vida. Não. O futuro era apenas a repetição da tristeza e da memória de um abandono, um lembrete do fracasso de uma relação que tive o desprazer de ter com um fracassado.

O tempo que passei assim foi longo, cinco ou seis meses de uma angústia profunda, de uma falta de certeza dos meus encantos, me perguntando sobre tudo o que me era certo: o que era um encanto? o que era uma relação?  o que é viver a dois? o que se sabe do outro? Tentava responder e não chegava a lugar nenhum. No fundo esse abandono me doeu mais como traição do que o apaixonamento do qual ele fugiu, tanto que as vezes gostava de imaginar que ele havia fugido pra casa da outra e estava lá como se se escondesse da besta fera que era sua namorada oficial. Vá lá que se apaixonasse por outra, que fosse capaz de me largar por ela, que se cassasse com uma mulher mais bonita e que esses fossem motivos para tristeza. Doeria muito, me faria sofrer, mas pelo menos faria um sentido dolorido, a dor ao menos não seria a angústia do sumiço. Um abandono com ares de sumiço apenas me punha a questão do que havia acontecido com ele e uma questão em aberto era uma ferida da qual jorrava um sangue infinito, impossível de estancar, indizível, me jogava numa repetição mecânica, como um animal cuja pata não caminha mais e ele acha que, lambendo, a fará sarar.

Pensava nisso e vez em quando e, como fuga dessa angústia, o imaginava com a outra pela qual se apaixonou. Colocava pra trocar sua música prefere de agora, –

(nunca achei que ela combinasse com ele, intensa e sexual como a música é, parecia mais comigo) -, bebia de seu vinho afrescalhado (esse devia ter seu nome no rótulo, fraco, sem graça e fugidio) como se fosse um homem, o imaginava fodendo sua amante, entrava como que em um transe. Fazia isso como que pra me inspirar a ter alguma ideia do seu paradeiro, como se a musica dele fosse ele me invadindo e como se, através de sua bebida e de seu pau, pudesse sentir seu gosto e seu cheiro misturados com os da mulher e do lugar no qual estaria. Eu o sorveria e saberia logo que tipo de alteração teria acontecido, que tipo de encanto o havia tocado, que pensamentos o perpassavam. Veria a vida com seus olhos.

 Por vezes a via morena, insinuante, olhos sedutores e frios, seu corpo grande e latino cedendo de sua imponência para ser lar praquele homem, seus olhos amansando como se ouvisse uma música capaz de adoçar o ser mais cruel e violento; por outras vezes ela era ruiva, as sardas e o sorriso dando um ar pouco sério e mais jovem ao corpo delgado e muito branco que era o dela. Me perdia por várias horas nisso às vezes, uma obsessão vinda não sei de onde, como se ele tivesse levado consigo o que eu chamava de ser desejada, como se eu fosse um boneco velho com o qual se para de brincar.

Tudo só mudou quando, num dia, acordei e me dei conta de que o outro estava lá do meu lado.

Parte VII
Parte VI

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

Comments

comments

Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.