Palavramor XI: Agressividade

Me dei conta muito cedo de que aquilo que vivia era a contraluz do que havia vivido. Me sentia como que revendo minha relação antiga e mudando tudo aquilo que havia de péssimo, mas ainda deixando algumas insatisfações ainda presentes para não ficar tão fácil. Brincadeiras voltaram a pulular em meu cotidiano. Ora corria com ele como uma adolescente pelo apartamento, fingindo que iria bater nele por algo que havia dito; outrora ele me fazia cócegas porque eu havia dito qualquer coisa mais engraçada ou agressiva; no sexo, forçava a boca dele no meu clitóris e rebolava e era presenteada com um sorriso safado de quem gosta de me fazer gozar. Toda a falta de expressão, de alegria e de desejo do outro era deixada para trás gradativamente enquanto mergulhava num mar obscuro de sensações deliciosas.

Uma noite ele me propôs uma forma de transar que eu nunca havia tentado. Implorou que eu sentasse na cara dele e rebolasse, tudo me pareceu muito caricato até o momento em que comecei a fazer. Retirei dessa experiência de controle e de ser servida um prazer tal que passou, aos poucos a se tornar minha esquisitice favorita. Era bom, eu dominava e ele fazia bem o serviço, me deixando constantemente exaurida.

Como vivia uma vida sexual sem quaisquer agressividades, essas novas experiências exigiam dele cautela. Não era eu acostumada com um homem agressivo para além da ideia, o sexo que tinha com o meu era leve, delicado, fofo; jamais pensei que teria tamanho prazer com um homem que me pegasse pelos cabelos, afundasse meu rosto na cama e me fizesse me sentir dominada como um cachorro indefeso; menos ainda pensei possível que eu tomasse a iniciativa de provocar em viagem, a mão não só apalpando por cima, mas ativamente invadindo a calça dele e buscando fazê-lo perder a compostura. Todas essas realidades, normais a muitas mulheres, me eram estranhas, estrangeiras, paisagens de um cenário sexual que eu não compunha. Eram. Agora isso é minha realidade, pensei, e me dava por satisfeita por poder ser turbilhão depois de ter sido tanto tempo calmaria.

Numa dessas vezes, o que era meu me ligou, não fiz questão de abaixar a música

nem nada, deixei tudo como estava, mesmo o sexo continuava rolando. O que agora é meu notou ser esse meu desejo e, em vez de parar e com um brilho sádico nos olhos, aumentou a força, me puxava, mordia meu pescoço, me puxava para ir mais fundo. Talvez minha voz trêmula, a minha respiração ofegante ou o barulho que fazíamos alertou ao que era meu do que ocorria. Enfureceu-se, começou a gritar e, como que para mostrar que tudo o que ele fazia não importava, deixei os gemidos que prendia saírem de sua cela e invadirem o quarto. Quando finalmente gozei num grito agudíssimo, soltei o celular. Quando o peguei de novo, o que era meu ainda me disse, como espécie de último gesto de ofensa, que nunca havia me amado. Nem querer o respondi, apenas pedi que o que agora era meu gozasse na minha cara em voz alta.

Eu sabia, tanto pelas nossas conversas enquanto namorávamos e quantos pelos insistentes pedidos dele, que essa era sua maior fantasia, quiçá a única digna desse nome; quando ele ouviu que o que era meu gozara e quando, provavelmente, me ouviu dizer que estava limpando o rosto, desligou o telefone. Fiz o mesmo logo em seguida com um sorriso e um beijo no agora meu. Senti, finalmente, liberdade daquele passado no qual as correntes eram de vidro, tão frágeis e ridículas como o que era meu sempre havia sido. Senti que, finalmente, estava abrindo uma fenda na minha feminilidade para a mulher que eu me tornara advir. E ela era muita coisa, mas nenhuma delas se assemelhava ao pálido reflexo de gente que havia sido nos últimos anos de namoro.

Parte X
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Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.