Pontas soltas

Ouvia Lenine. Paciência, é claro.

Paciência era tudo o que não tinha escrevendo aquele texto. Despejou tudo que sentia, tudo sobre ela, tudo sobre eles, não dando margem nenhuma para interpretações, só faltava encaminhar junto o nome todo do sujeito e uma foto. 

Como achou que postar o texto no blog público e em todas as suas redes sociais de influencer era pouco, enviou para ele. Perturbada pela enxurrada de sentimentos, a mensagem que acompanhava o texto era simples: “Me desculpe se for inadequado, mas eu precisava”.

E daí? Se ela precisa ou não, o problema é dela, não dele. Como alguém pode pedir desculpa pelo que não se arrepende? Se pretendia lógica, direta, objetiva, se gabava disso. Mas era um emaranhado de fios. Agora, também das pontas soltas que eles haviam deixado.

Culpava os sentimentos pelo desequilíbrio. E talvez mesmo culpa deles fosse.

Viu que ele ficou online no WhatsApp e gelou, os dois certinhos ficaram azuis no ato, a garganta mais seca que três livros do Graciliano juntos.

“Um pouco mais de paciência”, clamava Lenine já, pela quantidade de vezes que esfolara a mesma música, como se aquilo pudesse alterar qualquer coisa dentro dela.

Não, não podia. Nada podia. Então adotou o clássico pensamento de “o que é um peido pra quem já tá cagado”, o melhor arrimo de quem quer enfiar o pé na jaca, seguido de “só se vive uma vez” e todos os similares.

Foi até a casa dele, saiu de rompante. Disse para si mesma que “parecia que algo a empurrava”, como se houvesse qualquer força alheia lhe dando sinal. Mentira, a força mística que chacoalha desse jeito é interna e mais simples: a pura vontade.

Deu o nome na portaria e já começou a se sentir inadequada, mais, quando o porteiro pediu “sobrenome ou referência”. Tudo bem que tinha um nome comum, mas, sério? Falou um “deixa pra lá” se virando, segurando a marejada que o olho deu entre tristeza, mágoa e raiva – de si mesma -, quando ouviu o porteiro assentir e dizer que ela podia subir.

Ela. Podia. Subir. Bambeou com a sensação de soco no peito. Aquilo acontecer, de fato, olhar pra ele depois de semanas, depois daquela mensagem, talvez fosse pior do que voltar pra casa e se afundar no conforto das situações indefinidas.

Mas subiu, é claro. Se o pensamento “apostar tudo” servia para ir até ali, insana atravessando metrô, rua, chuva represada, xingamentos dos pedrestes em que colidiu com tudo, tinha que servir também para encarar ele e falar sem rodeios o que sentia. Não era isso o que ela “precisava”, palavras da própria, afinal?

Ele abriu a porta com a mansidão de costume, que ela tanto gostava, um contraste com o afã que trazia consigo, mais ainda agora.

Pensou em perguntar da mensagem, pensou em dizer “oi” de um jeito diferente, pensou em artifícios, pensou em poesia, em ir embora, em qualquer coisa, qualquer coisa que milagrosamente lhe ocorresse. São Longuinho que a fizesse achar o que fosse. Mas o que lhe ocorreu foi mais simples: que muitos desses pequenos milagres da vida somos nós mesmos que fazemos.

Então apenas disse, sem muitas explicações e justificativas, recusando o arsenal que a compelia. Disse sem cumprimentar, como se fosse natural aparecer na casa de alguém do nada daquele jeito. (Já tinha feito, não tinha? Que assumisse, então.)

“Eu gosto de você. E tá bem foda”.

Os dois riram com a espontaneidade daquilo. Ele mostrou o celular para ela, na mão, dizendo um bem-humorado “suspeitei”. Talvez nem tenha dado tempo de ele acabar de ler o “textão”. Ele colocou o celular na mesa de canto e puxou ela, no abraço das acolhidas. Mesmo ela parecendo um vira-lata da Augusta, entre suor e chuva pingando no corredor da roupa bagunçada.

Ela se aninhou na nuca dele, naquele abraço, se permitindo, pela primeira vez, relaxar, estar completamente em um momento, em alguém, nela mesma.

Na casa dela, do outro lado da cidade, a música que se esquecera de pausar ainda tocava: “A vida é tão rara, tão rara”.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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