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Querer só funcionar também pode ser um tipo de protesto

psicologa

Nunca produzimos tanta literatura sobre a psicologia humana e, no entanto, talvez nunca tenhamos tido pessoas tão submissas e acríticas sobre si. A produção e consumo de materiais psicoeducativos, diferente do almejado e suposto efeito de melhora de relações, tem tido o efeito contrário de produzir explicações que têm a chancela da ciência e que, por isso, têm produzido muito mais acomodação do que mudanças concretas.

É preciso que nos lembremos do tempo em que vivemos e do seu imperativo gigantesco para que “sejamos nós mesmos”, singulares e exclusivos, como nossas mães e nós mesmos gostaríamos de nos pensar sendo, mas somos impossibilitados por uma série de fatores. À vida mesquinha e, muitas vezes, vazia se opõe muito desse ideal capitalista da singularidade. Curiosamente, no entanto, quando um indivíduo procura um profissional psi, ele pode ser confrontado com dois grandes modos de existir no mundo: um que repete a alienação exortando a vivência da singularidade, da intensidade, etc. e outro que repete a alienação exortando a existência dos padrões, sobretudo pela via do diagnóstico.

Rapidamente o sujeito se dá conta, nesse cenário, de que não há fora, terceira via, ou seja, lá o que for: de alguma forma, ele vai ter que se alienar. Não é nenhuma surpresa, portanto, que a maioria só queira ser parte numa máquina, só queira funcionar o suficiente no seu dia-a-dia e não queira arriscar nenhum processo concreto de mudança. Não bastasse esta última ser dolorosa, é ainda muito mais uma forma de adequação sutil quer se apresente envolta de uma aura de crítica (no caso da psicanálise lacaniana, por exemplo) ou não (no caso do excesso de diagnósticos). De que adianta, então, se o não há fora?

Querer funcionar, nesse sentido, é se manter no limite do existente, no mínimo do uso de energia. As interrupções de tratamento, a automedicação excessiva com remédios psiquiátricos, a adoção de nomenclaturas psicológicas para seus estados de humor, etc, são todas formas do sujeito buscar ser o mínimo captado possível, fugindo para seu interior mais íntimo que se reduz, aí, a apenas comer, trabalhar e dormir. A redução a esse mínimo, longe de apontar uma covardia do sujeito, aponta que as soluções ofertadas até aqui, com nomes pomposos e conceitos bem pensados ou não, são insuficientes e cegas para ele. A questão: é até quando ele consegue aguentar sem uma solução?

Não é trabalho do clínico ofertar tal coisa, mas é, em algum grau, trabalho de qualquer membro da cultura, uma vez que é somente através dela que as coisas são ofertadas à sociedade. A questão se metamorfoseia, assim, na possibilidade de acessos ou de influências que o indivíduo sofre. Certo é que as pessoas sofrem, mas igualmente certo é que seu repertório pra lidar com este sofrimento é marcadamente pequeno, tacanho e, muitas vezes – quase todas – insuficiente. É tudo mais ou menos pré marcado, como se não houvesse opção, mundo tristemente claustrofóbico e encarado como impossível de mudar, então é melhor apenas anunciar a mudança, sem nunca tentá-la.

Num mundo prenhe de desconfianças e aparentemente ermo, visto ainda como imutável, uma obra ficcional na qual todos os personagens parecem todos saber o que precisa ser feito, mas nunca o fazem talvez seja o melhor espelho. O fato de que seja possível espelhar a sociedade numa obra qualquer, ainda que de modo imaginativo, por seu turno, já ilustra o quanto a sua aparente complexidade é apenas aparente: todos mais ou menos sabem bem o que há e toda a complexidade é redutível às letras e filmes pornográficos, à violência e à objetificação maciça de tudo e todos. Os relacionamentos, reduzidos a curtidas e a swipes left and right, os serviços às estrelas e a realidade a números. Essa matematização do mundo cria um ambiente funcional, mais árido no qual sujeito é apenas uma palavra fugidia, lançada ao vento e sem sentido.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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