Razão

Já conheço teu estilo, já imagino o que venha dessa música. Provavelmente outra de ritmo lento, uma mulher cantando, não é? Espero que sim. Faz tempo que adivinhar um homem não é gostoso assim. Antes era só… rotina. Vou reservar tua música praquele dia especial que eu passo creme no corpo de um jeito diferente. Sempre tem uma música nesse dia que realmente tô prestando atenção nele. Em cada parte. Devagar. Relaxando. O que você esperava? Todo mundo prometendo tanta coisa, uma hora a gente decide ceder e acreditar.

Que o creme vai fazer milagre.

Que meu toque vai me relaxar.

Que os astros comandam nossa vida.

Que aquele encontro foi destino.

Aperto play.

Começa baixo assim mesmo? E já te vejo rindo de que reclamo de tudo e não me foco. Passo a mão conforme a música toca, como que pra sentir a música tocando meu corpo. Como você me tocaria? Será que desceria com a boca no meu pescoço me fazendo cócegas? Será que tiraria minha roupa lentamente como quem abre um presente? Será que saberia esperar, apesar do seu desejo? Será que a gente encaixa?

I’m so tired
Of playing
Playing with this bow and arrow

Estou? Será? Será que não é essa distancia pra mirar que me permite te acertar toda vez? Já sei que existo pra você, tua música de ontem te entregou feio. Mas será que sou aquela imagem cafona da flecha do coração? Me diz que não, por favor. Odeio essa cafonice (mas secretamente anseio por ela, como anseio por mãos entrelaçadas na cama). Como será que você responderia ao meu toque? Será que faria como faço agora, subindo o creme pela minha coxa e relaxaria um pouco? Ou será que ficaria nervoso? E se eu fosse voraz e fosse com tudo em cima de você? E se você não tivesse sequer chance de respirar porque te desejo tanto? E se tudo isso fosse só um teste?

Gonna give my heart away
Leave it to the other girls to play

Convencido demais. Adoro esse jeito infantil de você ser convencido. Mas sempre parece que tem algo em você que me vê de verdade. Como se meu conflito não fosse oculto pra você. Eu sempre engano tão bem aos outros e a mim mesma. O que não funciona com você? O que você quer de mim? Minha mão chega à barriga – que aposto que você adora quando vê – e a acaricia devagar. Será que você seria um desses que a beijaria olhando no olho e me indicando que quer descer mais?

For I have been a temptress too long

“E não é exatamente isso que é ser mulher?” Os homens se perguntam. E confundem aqui quem somos. No fundo, pra gente, é isso: vocês se confundem conosco porque querem. A gente tenta a vocês, sim, porque isso estimula nosso orgulho, uma carícia quentinha no ego… uma migalha de desejo é melhor do que nada. Mas qual de nós nunca notou aquele homem – que você não quer – ali, apaixonado ou afim apenas, incapaz de te ver além do próprio desejo, vendo apenas a si mesmo nos nossos olhos? Qual de nós nunca sentiu a dor da separação do homem pelo qual estamos apaixonadas como a dor de uma separação do nosso próprio ser Mulher? E às vezes essa dor vem à revelia de nós mesmas… nossa vida nos leva a essas separações contra nossa vontade. Às vezes seria bom controlar até mesmo o tempo, do mesmo jeito que controlo a velocidade que acaricio meu pescoço e minha nuca pensando no que te tenta.

Give me a reason to be a woman
I just want to be a woman

Não é preciso ter grandes olhos, mas algum olho, é certo, pra saber que só somos Mulheres quando temos uma razão pra isso. É exatamente isso. Será que olharão tão fundo algum dia a ponto de ver isso? Não sei. Não é questão da dor de ser mulher, das dificuldades… de nada disso. Isso existe, mas não é isso. Os intelectuais, com seu conhecimentozinho, buscam as feministas pra nos entender. Os mais brutos nos ignoram e às vezes parecem nos entender até mais. Ao menos não somos peças de porcelana pra eles. Mas nossas verdades correm em subterrâneo, como um segredo nunca revelado, mas por todas sabido. Não é conspiração. Será que você entende o que é precisar de uma razão pra se mostrar? Você quem me pediu que ouvisse isso, afinal. Como você sabe que só quero poder ser Mulher, afinal? Deixar de ser essa garotinha manipuladora, assumir meus desejos. Mas você não sabe o que me pede. Talvez por isso seja tão gostoso ouvir o pedido. Talvez seja por isso que tenha fechado os olhos enquanto passo mais creme no colo e no pescoço, te imaginando com essa música.

So don’t you stop
Being a man

Sim, nunca pare. Nada daquelas bostas “fofinhas” da perfeição da mulher. Não me force a ser a mulher perfeita, aquela do seu ideal. Aquela que você defende como sendo melhor que o homem. Aquela na frente da qual você se desmerece. Assuma que você, convencido, é convencido mesmo. Isso me deixa ser convencida também. Me permite ter orgulho de mim. Não que você autorize, mas pelo menos não preciso fingir. Não preciso ser moralista. Me diminuir. Continuar fingindo que sou humilde. Continuar me preocupando com todo mundo. Se você conseguir isso, a gente consegue transar. E vai ser íntimo como sempre sonhei. Eu vou ser só eu e você vai ser só você. Poder ser quem eu sou na frente de um homem… Um suspiro chega a vir. Ambiciosa. Metida. Me achar um pouco. Não ser julgada. Ter minha alma vista e me sentir bem com isso. Que mulher não quer isso?

Just take a little look
From outside when you can
Sow a little tenderness
No matter if you cry

Você parece seguir os conselhos dela. Você faz isso. No começo achei que essa música fosse você conversando comigo. Agora vejo que você tá me entregando suas fontes. Não todas, você não é bobo e também é sua própria fonte, seria impossível me entregar todas, portanto. Mas você entende o que nós queremos elas querem porque você escuta. De verdade. Como é possível um homem penetrar uma mulher desse jeito? E, aqui, espero de verdade que você se imagine transando comigo. É o mínimo de covardia que posso fazer contigo depois dessa música.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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