Chego em casa de uma longa sessão na academia, aquela mesma que foi motivo para uma briga pelo simples fato de que não consegues ficar sozinha ao chegar na casa que, no entanto, tens acesso. Rumo direto ao banho, mesmo ritual realizado quando me fui. Não foi você quem partiu, não, fui eu, parti o vínculo existente como modo de sobrevivência e fuga. Naquele dia esfreguei a pele como nunca tentando lavar qualquer pequena coisa tua que poderia, por engano, ter se insinuado entre meus poros.
Mundo espiritual, magia ou sorte, aquela foi a mesma semana na qual várias coisas que outrora demoravam se resolveram numa velocidade avassaladora. Você saiu e contigo também se foram todos os acidentes na estrada que atrasam a rua de mão única da vida. Parece que foi isso que você foi, afinal: um acidente.
Deixo uma playlist pro banho e me dou conta de que não existem quaisquer músicas que me lembrem você ou um momento com você. Engraçado: acho mesmo que todo amor que valha a pena tem uma extensa trilha sonora. Isso já diz bastante sobre o que foi vivido ali. Também pudera: amor é relação de dois esperançados lutando para, em momentos curtos, serem um – e fingindo ter alcançado essa graça. Mas não era o caso: tu sempre me vias como uma extensão tua, a confusão de saber que não te sou sendo índice da gravidade da perturbação que tal noção te trazia.
Não é nem tanto que fôssemos um par impossível, mas é que a própria paridade não te era uma possibilidade. Te crias mesmo uma rainha e a mim teu, e só teu, peão (ou apêndice? Ao menos eu quem me desprendi). Ao mínimo sinal de uma tentativa de chegar ao fim do tabuleiro para me tornar rei, acionava tuas torres e cavalos e buscava me embarreirar de tal possibilidade sem nunca, no entanto, me tirar do jogo definitivamente. Teu medo vinha não porque temias que ao ser rei eu sobre ti reinaria, mas pelo contrário: precisavas de um rei que te ordenasse, precisavas ficar de joelho e não apenas para engolir tudo o que saía de um pau endurecido que fazias só parcialmente desaparecer e reaparecer com tua cabeça. Não. Precisavas ajoelhar-se para um rei que te ordenasse a vida e te fizesse esquecer de tua própria liberdade, palavra da qual tinha ojeriza e medo.
Teu medo terrível dela? Facilmente compreensível, como tudo que é teu. Tendo desde novilha aprendido a fazer de teu vazio profundo tua única pele, mostrava-se arredia, balia, corria e atacava quando alguém se aproximava de tirá-lo de ti. Para ti era cruel como uma tosa no frio e, porque não se saberia protegida como outrora, atacava a mesma fonte de amor pela qual ansiava.
Vai ver é por essa recusa do amor que desejavas tanto ser musa, mesmo que fosse de um poeta cujas palavras jamais te interessaram. Se acaso cruzasses com um texto meu, mesmo que este te mordesse a cara ou a bunda como fazíamos em momentos supostamente tão nossos, nem assim o reconheceria como meu. Não por que o faltaria assinatura, visto que a assinatura é a tessitura do próprio numa pele de palavras, mas porque jamais foste capaz de ouvir qualquer outro nome que não fosse o teu e, porque mesmo este odiava, todos os outros te são obscuros ou simplesmente desinteressantes. O desespero de gravá-lo numa memória plasmada pelas mãos de outrem denunciava que tua ação era um drink mal dosado feito do teu desejo de existir e de tua impossibilidade palpável de ser qualquer outra coisa que não uma sombra.
Termino meu banho, me seco, me olho no espelho: nada de teu em mim porque não és mais do que nada.