Rotina… acidental

10h, meu despertador toca me avisando de algum compromisso fixo, você acordaria pra fazer o café pra nós dois. Então percebo que até agora não o tomei, como se hoje, mais uma vez, você fosse se materializar mole de sono do quarto, óculos embaçados e roupas amassadas.

O que foi mais estranho não foi você estar aqui, mas justamente a naturalidade disso. Te ver encher a garrafa de água, reorganizar os frascos de shampoo e remexer suas coisas como se fosse normal. Pegando qualquer coisa na geladeira falando sobre o quanto vive puto, cabelos presos e ares de rotina. Banalidades que sempre fizeram parte dos meus desejos e que pareciam tão distantes que mal se davam forma. Deveriam ser estranhas por si, mas de repente só pareceu estranho qualquer coisa que fosse diferente disso. Um segundo, e você do meu lado como se ali sempre tivesse estado. Talvez pelo tanto que te refiz com estes pensamentos, te ensaboar o corpo, te trançar os cabelos, te olhar sonolento.

Meses atrás, um amigo em comum me disse que queria me ver apaixonada. “Mais de cinco anos pelo Fulano não conta?” Ele me disse que não, porque queria me ver na fase aguda da paixão, e neste caso já tinha virado crônico.

Concordei, era assim que eu me sentia. Acostumada. Como um pavimento tão bem fundido que mesmo presente se para de sentir. Apenas está ali, não se pensa, não se percebe. É integrante do cenário.

Era óbvio que eu não ficaria ilesa, mas achava que seria uma sujeirinha de dois/três dias ouvindo a mesma música em looping, uma cosquinha que eu resolveria comigo mesma em bons parágrafos ou, no máximo, quebrando o compromisso pessoal na garrafa de cîroc.

Achava que o primeiro trabalho mais interessante espantaria de mim você para longe, guardado aí em todos esses km em que você de fato está. O primeiro livro de temática que me prendesse, a primeira aula que me desafiasse, o primeiro amigo que me chamasse pra dançar, o primeiro show de um dos artistas que falam com a minha alma.

Claro que não.

Então é você, cabelos no ralo do banheiro, adereços na estante. Detalhes de um cotidiano que me veio como o mais normal de todos esses dia a dia incontáveis que já conheci, mas, veja a ironia, que não me pertence. É de mim o mais alheio. Então nada disso me afasta de você, pelo contrário. É também te ler no livro, e ver como a protagonista é parecida. É a piada que o professor faz na aula, é a roupa do amigo, é a música inesperada tocada no show. Tudo isso estaria lá de qualquer maneira, mas me queima você, porque você me está à flor da pele.

Escrevo por ofício e necessidade, e muito já te escrevi simplesmente porque é bom, porque te saber, por si, inspira. Mas hoje, aqui, é diferente. É um daqueles “pós”, que você já conhece e talvez até espere. É um daqueles momentos de assimilação e “assentamento” desse embolado de fatos, desejos-silêncios e sentimentos, que preciso explicar, antes, pra mim mesma (e mal como falo só mesmo escrevendo…).

Você me queima. Nas opiniões, nas dúvidas ainda insistentes, na sua própria incredulidade frente a nós dois, nas críticas, nas “palas”, nas nossas discordâncias, porque sempre fui de apreciar aquilo que a mim é obscuro, contraditório, oposto, incômodo, até. Mas me queima também no sorriso, no toque, no cheiro, porque são esses mais óbvios que dão as cores às paixões.

É foda queimar desse jeito. É foda ter reacendido esse “agudo da paixão” no peito, mais ainda por em tal nível inesperado (indesejado, mais ainda). De sentir a mão gelar e suar porque você me colocou no seu divã sem aviso. De perder dicção, direção, concentração. De rir boba por conta das suas mínimas derrapadas.

Mas isso não é o pior. O pior é não conseguir odiar. O contexto, você, a mim, a qualquer coisa que, canalizando o sentimento sublimado, me aliviaria de mim você.

O pior é, nisso, sentir felicidade. Me vir seu toque das madrugadas e achar graça comigo mesma. Me virem suas costas e dar efeito. Me virem tantos flashes de olhares e sorrisos próximos demais pra retina conseguir foco e me encher o peito.

Seria fácil sentir só a inconformação, a frustração, a decepção, a mágoa, a tristeza, o ódio, as dores. Isso tudo se deixa na gaiola rodando atrás do próprio rabo, sozinhos se distraem; torna-se fácil, então, deles passar por cima e os ignorar.

O foda mesmo é pensar em você e, de novo, e sempre, sentir amor.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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