Vem Conversar

Só entro

Retiro os escombros de onde eles estiveram por tanto tempo e de onde nem sequer pensei que pudessem sair. O formato de corpo marcado no lençol, remarcado fisicamente por meu excesso de livros que emulavam a companhia ausente, agora desaparece com a facilidade com que retiro a roupa da cama. Cômico. Retirar a roupa de cama é tão fácil quando era retirar a roupa de outra. A expectativa, no entanto, é outra. Quando tudo se lava e se mistura às roupas sujas do cotidiano, vejo o simbólico daquilo se dissolver como uma caricatura. Tudo bem ridículo.

Você nota a roupa de cama diferente, me nota reflexivo quando deitado nela e se pergunta qualquer coisa, deixando escapar um olhar de quem quer saber, mas não tem coragem; te retiro dos teus pensamentos do jeito que te vejo gostar toda vez que algo assim acontece: entrando em você de repente. Você se assusta, mas gosta, geme, a intensidade em crescendo, como se nossa própria música não se aguentasse nas notas pachorrentas que já foram as nossas com outros corpos. Instrumentos somos, mas quem os toca se somos o mesmo? Parecemos uma sinfonia que precisa se impor, irromper dali mesmo de onde nada pareceria surgir. E como toda sinfonia que é digna desse nome no cânone, começamos de repente e desenvolvemos nossos temas, numa forma que é só nossa. Variações em torno do grande tema que é nós dois.

Notas e silêncio se alternam, o silêncio sendo a condição da melodia e sendo apagado por sua progressão. A construção de uma tensão que toda música carrega, como água que ferve em espaço pequeno e restrito, esperando explodir. O orgasmo, que é momento de suspensão da música porque é consumação mais forte. É a nota altíssima que precede o silêncio. Momentos hodiernos de uma relação amorosa que parecem mesmo serem os seus mais fundamentais.

Explosão consumada, liberdade retomada e a pergunta finalmente pode emergir: “no que você estava pensando?” você me pergunta, suada, ar ofegante e olhar levemente preocupado. “Nas mudanças recentes…” respondo, sem grandes preocupações porque não menti “…também causadas por você.” e seu olhar se alegra, as margens do corpo fraquejando em conter a correnteza que quer também me engolir. Você deita por cima de mim, braços ao redor do meu rosto, cabelo caindo na minha cara, seios como que em oferta e recompensa a mim. Mas a real recompensa, piegas que seja, é sua felicidade, que provoca em você o desejo de reciprocidade. Olhar intenso que me fita, como se quisesse sondar a verdade. A música troca, como que por adivinhação ou controle, destino se mostrando, como quase sempre, o melhor dos arquitetos:

Ele falou bem: seu corpo é um caminho sem saída… aliás, como o que você construiu estando em cima de mim, de quatro, me olhando. Mas não só. Foi também o caminho todo que você me construiu e me fez fazer até a direção do esquecimento, do abandono de certas marcas, de certos ajustes muito seguros. Foi o caminho do deslocamento de uma certa preocupação com o passado para desejar você, presente-presente. Um caminho cheio de veredas, na verdade. Por isso, só entro.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

Comments

comments

Sair da versão mobile