Paciente entra na sua primeira sessão, logo após a entrevista inicial. Esbaforida, embora esteja em casa, se senta e, após um longo suspiro, dispara:
– Nos últimos tempos eu não tenho feito nada além de sofrer.
– E por que você tem se feito sofrer tanto? – pergunto.
Ela se assusta. Se dá conta de que o sofrimento que me narrara na primeira sessão não só não fora esquecido por mim como emergia ali, naquele momento, como algo a ser falado sobre. Ela pôde, assim, se dar conta de que tem alguém para a ouvir, alguém que não está exatamente buscando entender o que ela diz, mas sim escutar. E esse alguém havia escutado uma verdade fundamental dela, mas porque é a verdade de todos: somos nós que fazemos nós. Essa frase tem alguns sentidos e peço que o leitor pense um pouco nas possibilidades aqui. Logo depois, a mesma paciente continuou:
– Engraçado, você já na segunda sessão notou o que a última nem em um ano se deu conta.
– É importante ser notada para você se sentir mais capaz de falar do seu sofrimento?
E, depois disso, desandou a falar sobre algumas das situações da sua vida.
Essa pequena intervenção, que soa como uma espécie de interrupção do fluxo normal das conversas, é basicamente a demonstração da atenção às palavras exigida de todo analista (o que não significa que todos a tenham). A forma como a gente diz o que a gente diz é tão importante quanto o conteúdo dito de modo que, a rigor, não existe a famosa “é tudo a mesma coisa” ou “você entendeu, são sinônimos”. Por mais que socialmente batamos na tecla de “as vezes é como fala”, ainda funcionamos normalmente pensando “no que” se fala. Mas resta ainda o fato de que escolhemos dizer daquela forma, quer essa escolha seja consciente, quer não. É também isso o que se chama responsabilidade: saber que somos os únicos a sermos apontados no caso de algo feito por nós, a despeito das condições, das situações ou do problema à frente.
Note-se que isso não significa que sejamos culpados pelo que fazemos. Culpa possui uma conotação moral muito forte, quase como se tudo fosse recair sobre nossas costas. Responsabilidade não. Responsabilidade só aponta que, seja lá o que foi feito e sofrido foi feito e sofrido por nós, e somos nós que teremos de nos haver com aquilo. Não importa muito se não tínhamos como reagir ou como agir diferente: isso marcou a nossa história pessoal e, portanto, teremos de nos haver com aquilo.
Já se vê daí, então, o porquê de responsabilidade não se confundir com culpa. Muitas das coisas da nossa história foram sofridas por nós sem que pudéssemos, de fato, fazer nada, uns mais, outros menos. Algumas pessoas sofreram porque terminaram com elas, outras porque passaram por situações de violência estrutural (racismo, machismo, homofobia, etc.), outras porque foram assaltadas e assim sucessivamente. Mas todas essas pessoas terão de se haver com essa marca em sua história pessoal e se haver com isso. Terão, então, de assumir sua responsabilidade sobre si, não porque em algum momento quiseram passar por essa violência, mas porque foram elas quem passaram.
Apreender isso em sessões de análise é inicialmente apavorante, depois aterrador e, por último, libertador. Não torna os sofrimentos menos sofridos, as dores do término menos dolorosas ou os dissabores menos amargos. Mas, certamente, nos dá outra dimensão para nossos quereres, abranda em muita nossa imaginada onipotência e, por conseguinte, reduz em muito nossa culpa frente aos problemas que encontramos.
Ao longo desse processo, por vezes nos confrontaremos com desejos que nos atravessam e que juramos serem do nosso mais íntimo, mas que vêm, na verdade, de um pai ou de uma mãe; outras vezes notaremos nosso quinhão no sofrimento que se abateu sobre nós e nossa possível satisfação em ficar numa posição masoquista; outras, ainda, sofreremos ao aceitar que naquela situação, aquela mesma que ficamos remoendo infinitamente como responder no chuveiro ou no ônibus, nada podíamos fazer porque era uma situação muito maior do que a gente. Veremos, em suma, nossa grandeza onde achávamo-nos pequenos e nossa pequenez onde achávamo-nos grandes.
Essa mudança de perspectiva enriquece em muito as coisas, especialmente a maneira como usamos as palavras. Se quando digo algo sou responsável inclusive pela construção frasal específica que utilizei, tudo ganha uma importância renovada, cada palavra conta e cada construção de frase é uma construção minha para o outro que faço. Mas isso é apenas de meu ponto de vista, é claro, posto ser eu passível de responsabilização pelo que disse, mas não pelo que o outro escutou. Da mesma forma que sou responsável por aquilo que estou dizendo ao endereçar o outro, não sou responsável por aquilo que ele escuta de meus ditos, de modo que cabe a ele se responsabilizar tanto por me escutar de determinada forma, quanto por checar ou não se foi aquilo mesmo que disse.
Temos, assim, um modelo de conversa que parece muito maluco, uma vez que a correspondência entre o que se fala e o que se escuta desaparece, restando apenas pequenos pontos de coincidências. Mas… não é assim sempre e nunca nos damos conta? Os exemplos, pessoais ou não, abundam: alguém nos ofende profundamente com uma coisa que diz e, quando ouve a mesma coisa da gente, ri muito e acha tudo uma brincadeira; alguém conta uma piada de humor negro e um se desmancha em risadas ao passo que outro fica sério e busca cancelar o humorista na internet; uns acham ridícula a teoria de que um convite pra tomar uma cerveja enquanto se bebe um Campari é uma tentativa de manipulação e outros acreditam nessa mesma teoria.
Em todos esses casos, as mesmas palavras foram proferidas, mas a escuta foi distinta. A responsabilidade de quem escuta, aqui, é tão fundamental quanto a de quem fala para a construção de um cenário específico, de modo que a responsabilidade do falante terminou, realmente, quando terminou de falar.
O que se depreende daí, então, é que tanto em posições ativas e agentes quanto em posições passivas e pacientes, somos responsáveis pela construção de um sentido para aquilo que nos ocorre e para aquilo que fazemos. Se é esse o caso, somos responsáveis, então, por nós mesmos, de um jeito muito mais fundamental do que nos cremos. Somos responsáveis pela nossa existência como um todo, embora não sejamos culpáveis pelos acasos que nela se sucedem. Chegamos, aqui, então, à noção de responsabilidade como algo que nos define enquanto existentes e falantes que somos. Se mesmo a forma como falamos e escutamos é tão fundamental quanto o assunto, somos responsáveis mesmo por tudo o que se passa conosco.
Esse é um processo de descoberta que, embora descrito aqui, depende de uma série de experiencias de transfiguração subjetiva para ganhar corpo. As psicoterapias, quando bem feitas, todas tendem a levar a esse ponto; uma real conversão a certas formas religiosas, especialmente àquelas que se ligam à meditação como mortificação do eu, também; as filosofias existenciais (ou, no popular, existencialistas) do começo do século XX todas bateram nessa mesma tecla e tentam levar seus estudiosos a esse ponto. Todas convergem para uma noção comum: somos sozinhos apesar de estarmos sempre com os outros e, portanto, somos os únicos a termos de nos haver com nossa história pessoal. É uma noção bastante dura, árida e que, para muitos, é difícil de aceitar. O lado bom é que, a partir do momento em que sacamos isso, aprendemos que nada do que nos sucedeu e sucede é necessário. Como formulou essa mesma paciente alguns anos mais tarde, a dúvida toda, ao nos darmos conta disso, é: e o que fazemos disso? Isso caberá, como esperado, a cada um responder.