Sustentar o Real

É muito comum o contato com os conceitos de Lacan pra quem tem o mínimo de acesso aos conteúdos da psicanálise, sejam eles oriundos de aula, da própria análise ou de vídeos de divulgadores da psicanálise no YouTube. Talvez a tríade conceitual mais famosa e mais exposta, nesse sentido, seja a do Simbólico/Imaginário/Real, tríade essa que em praticamente todos os aspectos é profundamente contraintuitiva. Especialmente o último conceito, o de Real, é usado para se referir, geralmente, às situações traumáticas que emergem na vida dos pacientes e/ou dos indivíduos não pacientes, ou seja, o Real tem uma conotação sumamente de uma impossibilidade, de uma destruição, de um limite, etc., sendo sempre algo que irrompe e rompe com o já estabelecido. Outra forma, mais filosófica, de dizer isso, é dizer que o Real é um conceito sumamente negativo, ou seja, que é um conceito que se define por negar outros aspectos do mundo no qual ele aparece. Como se vê, bem diferente do real que diz “realidade” ou “aquilo que é” ou ainda “aquilo que tem concretude evidente em nossa frente”.

Se é assim e se queremos manter essa compreensão, precisamos e agora podemos salientar que a expressão que dá título ao texto é menos escrita em artigos, embora seja bastante dita e que ela é proferida, geralmente, em situações traumáticas. É comum que ela venha acompanhada de outras expressões primas-irmãs, como “emergência do Real”, “o Real traumático do corpo” e coisas afins. O que se tenta apontar, com isso, é que existe algo que escapa à nossa capacidade de conferência de sentido, sendo esse algo sem sentido à princípio e, portanto, intrinsecamente incompreensível.

Outro psicanalista que escreve para este blog, Marcos, escreveu sobre a angústia que podemos suportar. O real está aí diretamente ligado com essa angústia, se essa for pensada como a ausência de sentido que nos abate de vez em quando, essa coisa aproximada que a cultura pop muitas vezes chamou (com base em literatura difusa das ciências psi) de crise existencial. Um dos maiores filósofos do século XX, Heidegger forneceu, em um de seus textos, a fórmula mais simples pra isso: “na angústia a gente se sente estranho”, ou seja, é como se fôssemos estrangeiros naquilo que chamássemos há 2 segundos atrás de “normal”.

Ao leitor que nada conhece de psicanálise lacaniana ou que conhece pouco, isso obviamente soa estranho: se é o Real, ou seja, algo existente, verdadeiro, material, etc. como ele pode ser traumático? Como ele pode “emergir” se ele sempre esteve lá? Por que ele precisaria ser “sustentado” se é ele quem sustenta toda a vida que existe por ela é ele? Então, é justo tudo isso que o conceito de Real em Lacan não é.

O conceito de Real tenta apontar para uma realidade existente mesmo antes de quaisquer interpretações, conceituações ou humanizações existentes. Note bem, leitor, eu disse: quaisquer conceituações. Se é esse o caso, o Real de um ato nunca vai ser correspondente com como a gente narra esse mesmo ato, de modo que o Real é, por princípio, inenarrável. Se é qualquer tipo de sentido que deixa de existir no conceito de Real, estamos falando então da materialidade concreta da existência em sua bruteza máxima, sem nenhum tipo de polimento. Mal comparando, é como se a nossa realidade fosse uma escultura de mármore já formada e o Real o mármore bruto, em pedra, que antecede essa mesma formação artística. Podemos, no máximo, fazer exemplos aproximativos, como o precedente. Como eu disse um “ato” imaginemos isso aplicado à ação.

Imaginemos um casal que está junto há dez anos sob um regime de casamento monogâmico. Imaginemos, agora, que um dos membros do casal, resolva transar com outra pessoa. Imaginemos que seja a mulher para variar um pouco da história já batida do homem que trai porque “está cansado do compromisso” ou que “tem uma mulher que não transa e não satisfaz”. Imaginemos, por fim, que ela, tomada de culpa, resolve contar a traição feita num impulso. O marido ouve a tudo estarrecido. Nada daquilo sai da boca de sua esposa sem doer. Vê-se sem chão. Em choque, como uma primeira tentativa de dar sentido às coisas, pensa que não havia percebido nada do/no comportamento dela que indicasse tal ato. Depois pensa que deve ter sido algo que ele fez ou deixou de fazer. Cobra explicações a ela, ela retruca dizendo estar cansada, não saber o porquê de ter feito o que fez. Ele então modifica sua interpretação e diz que a ela faltava amor ou caráter, como o leitor preferir imaginar. Ela retruca dizendo que não é isso. Eles, nesse momento, debatem, discutem e brigam infinitamente sobre o sentido daquele ato e sentido vai ser o que, posteriormente, construir suas motivações, como se a história fosse construída do fim pro começo.

Se fosse passível de nos atermos a uma leitura em termos de Real (mas não o é, já que o Real é a abolição da possibilidade de leitura de mundo, como vimos), a descrição do ato seria mais ou menos assim “dois corpos estiveram em coito”. Mesmo isso, por ser uma linguagem científica, já é dizer demais, mas já nos dá uma ideia do que quer dizer o Real de Lacan. Não existem mais sujeitos dotados de capacidade de escolha agindo, mas corpos interagindo; não é transar, trepar, fazer amor, fazer sexo, etc, mas a impessoal linguagem da cópula, uma fórmula descritiva bastante seca e fria embora, como dissemos, isso ainda seria demais posto que o Real não aceita linguagem porque não a possui, é justo a realidade antes dela; não mais, sequer, homem e mulher, apenas corpos, embora isso também seja demais, já que corpo já pressupõe uma totalidade organizada de determinada forma, etc.

Apesar de todas as limitações, já dá pra ter uma ideia inicial do quanto o Real é desprovido e resistente à significação que nós tentamos dar a ele. Mas, e como isso se aplica ao trauma que dizem ser “a emergência do Real” ou ainda, por que, muitas vezes, se diz que tudo que um analista pode fazer com seu paciente é “auxiliá-lo a sustentar o Real naquele momento”? Nesse caso, creio que uma vinheta clínica pode ajudar. É importante ressaltar que essa paciente pede constantemente que sua história seja conhecida e narrada, razão pela qual ela foi eleita aqui. O nome é obviamente trocado, algumas partes mudadas e toda a proteção ética aplicada. Sigamos.

Catarina é uma mulher preta de 30 anos moradora de uma das favelas do Rio. Desde pequena nunca teve estabilidade na sua vida. Até mais ou menos os quatro ou seis anos (não lembra bem) morou com seu pai e a família dele no Ri. Essa família era excessivamente religiosa e de denominação evangélica. Todos a tratavam muito mal, apesar de ser uma criança, porque sua mãe era umbandista. Depois desse tempo com a família paterna morou um tempo no Maranhão com sua mãe e a família dela, uma realidade bastante distinta da qual ela diz ter gostado bastante, mas que não durou muito. Dali, ainda com sua mãe, retornou ao Rio para a favela onde mora agora. Sua mãe teve um namorado que fez as vezes de padrasto durante um bom tempo e, com sua mãe, teve um casal de filhos que são seus meios-irmãos que, narra a paciente, a tratavam ora como empregada, ora como meia-irmã de fato e a mãe pouco intervém, embora sempre aparte quaisquer brigas que surjam

Ela se lembra desse homem a olhando com desejo quando tinha por volta de 8 anos enquanto ela tomava banho e essa não seria a única vez, tendo ele, por vezes, feito questão de passar por ela algumas vezes, enquanto ela estava de toalha. Isso aconteceu repetidamente quando ela tinha por volta de dez anos e sua mãe nada fez.

Sua mãe, aliás, sempre confere sentido a tudo na realidade a partir de seu excessivo fervor religioso, atribuindo tudo aos espíritos ou a um plano superior, de modo que os sofrimentos são sempre passíveis de explicação pela noção de carma. Sendo assim, não há espaço para um sofrimento sem sentido, pois ele já nasce explicado de antemão.

Pulando alguns anos dessa história de vida de Catarina, ela briga com sua família por conta dos repetidos maus-tratos e, num dos momentos em que a mãe toma o celular de sua mão, avança para toma-lo de volta. Nessa hora, seus irmãos intervêm de maneira absurdamente desproporcional, “me dando uma puta surra, doutor, fui pro hospital e tudo”. Essa história foi confirmada pela mãe tanto a mim (ela me procurou por questões outras) quanto ao seu psicanalista, um colega meu de grupo de projeto.

Resolve prestar queixa contra a família, sair de casa e ir morar em abrigos. Pulando também a série de atrocidades pela qual passou, narro apenas a última, o momento no qual morou com um cadeirante que usava crack e que ameaçava coloca-la na rua se ela não permitisse que ele enfiasse os dedos em sua vagina mesmo a contragosto, ao que ela cede. Resolve buscar outros abrigos para morar e, quando finalmente consegue, esse homem vasculha sua bolsa enquanto ela dorme, rouba seus papéis e começa a tentar agredi-la. Num desses movimentos de agressão ela sai de perto e ele cai e começa a implorar por socorro. A comoção atrai vizinhos e a polícia a chamada, todos crendo que ela havia agredido um cadeirante porque é esse o cenário que o seu companheiro pinta ao se manter estirado no chão gritando por socorro.

Catarina é presa por algum tempo e todos os aviltamentos que uma presa sofre são desnecessários aqui, embora estejam presentes em sua narrativa e em sua vida. Quando sai, procura meu projeto e começa a se atender comigo. A sentença final, injusta por conta da leniência da Defensoria Pública, é de que tem que pagar algumas cestas básicas (ficou comprovado pelo corpo de delito que não houve agressão) e prestar algum tipo de serviço comunitário.

Atualmente, recebendo apenas os 600 reais de Auxílio Brasil e tendo que pagar 300 de aluguel (a irmã não a quer morando com ela e a situação entre as duas é, todo caso, insustentável) se alimenta de mistura e embutidos porque não tem dinheiro para uma sombra de alimentação saudável que seja. Frutas, verduras e legumes, os tais pratos coloridos dos nutricionistas, soam para ela como ou um sonho distante, ou um deboche de mal gosto.

Eventualmente, começa a sentir fortes dores nas costas e, ao fazer o exame de imagem, descobre um cisto em seus rins e gordura no seu fígado, o que ela percebe como tendo sido invadida por alienígenas. Chora copiosamente pela primeira vez desde que teve a notícia, há cerca de uma semana atrás, porque encontra ali, durante a sessão, um ambiente ou um espaço no qual vai poder chorar sem ser interrompida e sem que seu choro ou sofrimento ganhe qualquer sentido de minha parte. Entremeia o choro com o fato de saber que precisa de dieta e não pode pagar por ela, com a conversa que teve com sua irmã sobre o que pode comer ou não, o quão injusto é vir duma família que tem essa doença como algo hereditário (sua mãe também é “cheia de cistos pelo corpo”), enfim, com todo o jogo de ausência e tentativa de dar sentido que a situação traz.

As lagrimas e o choro duram por volta de 20 a 25 minutos seguidos e retornam quando me conta de uma amizade que se rompeu quando da eleição de Lula (ela, lulista de ocasião; sua ex- amiga, que “a abandonou”, bolsonarista fanatizada). Chora por mais uns 10 minutos e gradualmente retorna a um estado mais calmo. Minhas intervenções, quando existem, são apenas para que ela fale um pouco mais ou tranquilizando-a de que ali poderia chorar.

Esse momento no qual as lágrimas caem e descarregam um afeto, ao mesmo tempo que constroem uma correnteza para o sofrimento; esse momento no qual a água que lava o rosto é o único sentido que se pode dar à experiência vivida; essa hora na qual o analista vê que se melhor intervenção é apenas sua presença: isso é sustentar o Real o com sua paciente ao fornecer o espaço para que ela o faça e se depare com o sem sentido do seu próprio corpo. Afinal, o porquê de ter cistos, em si mesmo, não existe; pode-se explicar causas origens e etc., mas nunca se pode explicar àquele indivíduo o porquê de ele ter sido escolhido naquele tempo, naquela hora, naquele lugar, etc. Essa ausência de explicação que se apresentar quando a vida se apresenta em seu estado bruto de falta de controle e sentido: eis o encontro com o Real.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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