Vem Conversar

Tautologia

Saindo do Hades, Orfeu buscou ver se Eurídice o seguia, porque esta o atormentava constantemente ao duvidar de seu amor. No entanto, a condição para que conseguisse sair de lá com sua amada era que não olhasse, jamais para trás. Deveria confiar que Eurídice o seguia e o amava, bem como que toda a sua dúvida era apenas forçada para que Orfeu perdesse sua chance de remover sua amada do inferno. Orfeu sucumbiu e, em dúvida, olhou. Ao fazê-lo, fê-la dissolver; perdeu-a no momento mesmo em que quis certificar-se, como as areias correm pelas mãos que fortemente às constrange em um aperto.

Desde que o primeiro olhar foi trocado, desde aquele momento me que vimos um ao outro (vimos?), desde esse momento que parece mesmo com uma espécie de toque à distância, nos enlaçamos. Sempre achamos tosca a ideia de que fosse possível um olhar mudar tudo. O que mudou? Simples. Em alguns momentos, barreiras removidas e alma à vista, um olhar nos transporta para outro lugar. Com efeito, o que é o olhar, afinal?

Uma pergunta. O olhar por vezes não é mais do que isso: uma pergunta ao outro por aquilo que se quer fixar. Interroga porque presentifica qualquer coisa de humano. Um humano que nos olha é a humanidade inteira interagindo conosco e modificando de maneira fundamental aquilo que compreendemos pelo espaço em que estamos. Nos faz retornar a uma atitude ética que não teríamos quando sozinhos. Por contraste, os animais que nos veem não presentificam todos os animais e, ainda que o fizessem, não nos constrangeriam. Seriam animais de outra inscrição, afinal. A pergunta de seu olhar não poderia ser por nós replicada, de modo que seu ver nunca é, de fato, olhar como o nosso. Ainda que um cachorro nos interrogue virando sua cabeça a quarenta e cinco graus, jamais será o mesmo que um humano replicando o mesmo gesto de interrogação. Com uma interrogação animal nada fazemos porque sua solução é, de todo, impossível em nosso plano; a uma interrogação humana, no entanto, respondemos, porque ela nos pergunta indiretamente quem somos.

Quando te vi, então, que pergunta me fizeste com seu olhar? Pergunta de difícil solução. Já me invadias sob uma luz, com determinados jogos de chiaroescuro, com uma expressão, uma coloração. Eras humana. Já me surgias, de certa forma, com uma interpretação pronta de quem eras e teu derredor era como se o espaço já me quisesse fornecer um ponto de partida. Apesar disso, nada me era entregue. Eras e ainda é como um enigma. As partes que a luz favoravelmente esconde, as outras que tu mesma escondes com as maquiagens, o corte de cabelo que visa ressaltar quaisquer coisas…nada disso parece me dizer nada além de um simples “é assim porque é assim”, afirmação tautológica que nada diz.

Curioso. A tautologia é geralmente dita ser uma afirmativa que nada de novo diz porque reitera algo já dito. Não é o nosso amar, portanto, precisamente uma tautologia do olhar?

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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